Europa quer acelerar corrida armamentista, mas enfrenta entraves

THE NEW YORK TIMES — Em um amplo centro de produção de armamentos da Saab em Karlskoga, na Suécia, os projéteis de calibre 84 milímetros, capazes de tirar de combate tanques com um único tiro, são montados cuidadosamente a mão. Um trabalhador empilhava sobre uma bandeja tiras de explosivos em forma de espaguete. Outro fixava feixes translúcidos em torno das aletas de um sistema de orientação.

Diante do edifício baixo, um entre centenas no vigiado parque industrial, outra fábrica está em construção. A previsão é que a capacidade do centro de produção — a poucos minutos de carro da residência de Alfred Nobel, o inventor da dinamite e fundador do Prêmio Nobel da Paz — deverá mais que dobrar nos próximos dois anos.

A ampliação é parte de uma expansão titânica no gasto militar que todos os países da Europa empreendem desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, 18 meses atrás. Mas a corrida desenfreada de mais de 30 países aliados para estocar armas após anos de gastos militares mínimos levanta a preocupação de que essa fortificação massiva seja desconjuntada, resultando em desperdícios, escassez de componentes, atrasos desnecessários e redundâncias.

“Os europeus não consertaram a maneira profundamente fragmentada e desorganizada com que geram suas forças”, afirmou um relatório recente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. “Investir mais de maneira descoordenada melhorará apenas marginalmente um status quo disfuncional.”

Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que estabelece a estratégia geral de defesa do continente, e a União Europeia pressionam por maior cooperação e integração criando várias novas iniciativas, incluindo uma para coordenar contratos de aquisição de armamentos dos países-membros.

Mas um crescente coro de fabricantes de armas, figuras políticas e especialistas militares alertam que os esforços são aquém do necessário.

“É preciso haver alguma claridade, pois nós não somos os Estados Unidos da Europa”, explicou o presidente e diretor-executivo da Saab, Micael Johansson, na sede da empresa, em Estocolmo. “Cada país decide por si que tipo de capacidade precisa.”

Cada país tem suas próprias culturas estratégicas, práticas contratuais, especificidades, processos de aprovação, treinamentos e prioridades.

Membros da aliança podem até usar as mesmas aeronaves, mas possuem sistemas de criptografia e instrumentos diferentes. Conforme têm constatado os soldados ucranianos, projéteis calibre 155 milímetros produzidos por um determinado fabricante não cabem necessariamente em obuses fabricados por outro. Munições e componentes nem sempre são intercambiáveis, o que complica a manutenção e causa panes mais frequentes.

A União Europeia “não tem um processo de planejamento de defesa”, afirmou Johansson. Neste verão (Hemisfério Norte), ele assumiu o cargo de vice-presidente da Associação de Indústrias Aeroespaciais e de Defesa da Europa, uma entidade comercial que representa 3 mil empresas. “A Otan tem de repensar a maneira de criarmos resiliência em todo o sistema”, incluindo em cadeias de fornecimento que entregam as munições que os soldados usam no campo de batalha.

Matérias-primas cruciais, como titânio e lítio, assim como sofisticados equipamentos eletrônicos e semicondutores, têm alta demanda.

E há escassez de explosivos, particularmente de pólvora, dos quais toda a indústria armamentista depende. Mas tem havido pouca discussão detalhada a respeito de quais sistemas deveriam receber prioridade ou como o fornecimento de pólvora como um todo poderia ser incrementado.

“Eu sugeri isso”, afirmou Johansson, “mas ainda não aconteceu”.

As discussões ocorrem num momento em que a resiliência de extensas cadeias de fornecimento de todos os tipos tem sido reexaminada. As recordações das interrupções dos fluxos de gás natural e grãos decorrentes da guerra na Ucrânia ainda estão frescas nas memórias, sem mencionar os atrasos na produção e entrega de mercadorias e materiais causados pela pandemia de covid.

A grande tendência agora, afirmou Michael Hoglund, diretor de negócios para combate terrestre da Saab, é diminuir a extensão das cadeias de fornecimento e trazê-las para perto, criando opções confiáveis para sua manutenção. “Nós não estamos mais comprando do fornecedor mais barato”, afirmou ele. “Nós estamos pagando uma taxa para sentir mais segurança.”

Coordenar fornecimentos é apenas um fator. Fazer uma miscelânea de variados sistemas de armas, práticas militares e tecnologias desempenhar em concerto sem sobressaltos sempre foi um desafio. A Otan estabeleceu padrões para que diferentes sistemas sejam compatíveis — o que é conhecido como interoperabilidade.

A prática, porém, pode não ser harmoniosa.

O relatório anual da Agência Europeia de Defesa de 2022 constatou que apenas 18% dos investimentos em defesa no continente são feitos conjuntamente, metade do montante pretendido. “O nível de cooperação entre os nossos Exércitos é muito baixo”, afirmou na época o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell.

A Suécia está prestes a aderir à Otan, mas já atuou em parceria com a aliança antes, e a Saab, que produz vários sistemas de armamentos, incluindo os caças de combate Gripen, vende seus produtos para países de todo o mundo.

Os gerentes da empresa já testemunharam de perto alguns desafios de coordenação em maior ou menor escala.

“Todo sistema de cada Exército é construído de uma maneira especial”, afirmou Gorgen Johansson, que coordena a operação da Karlskoga. (Ele não é parente do diretor-executivo.) Atrás dele havia um cano verde, vazio, usado para lançar o míssil antitanque portátil NLAW fabricado pela Saab. O tubo foi assinado pelo ex-ministro da Defesa ucraniano e devolvido à fábrica como um gesto de agradecimento.

Alguns clientes, afirmou Johansson, querem dois lançadores embalados em uma só caixa, outros querem quatro ou seis, porque adquiriram veículos e equipamentos capazes de carregar diferentes quantidades.

Johansson afirmou que, há até bem pouco tempo, era impossível fazer os atores até mesmo dialogar a respeito de padronizar posições de etiquetas ou suas cores.

Problemas maiores persistem. Depois que a Guerra Fria acabou, enormes fusões de empresas de defesa ocorreram, conforme o gasto em defesa encolheu. Mesmo assim, como as variadas marcas de cereais, existe uma ampla variedade de fabricantes de grandes sistemas de defesa. A Europa possui 27 tipos de obuses, 20 modelos de caças de combate e 26 destróieres e fragatas diferentes, de acordo com uma análise da consultoria McKinsey & Company.

Ao construir uma força de combate unificada, a Europa deve equilibrar a competição, o que pode resultar em melhorias e inovações, com a necessidade de eliminar desperdícios e coordenar operações, comprando ou até projetando armas em concerto.

O fato de a Europa depender primeiramente dos EUA para garantir sua segurança sublinha a importância da singular expansão militar europeia. As queixas do ex-presidente Donald Trump, em 2018, a respeito de gastos militares insuficientes na Europa e suas ameaças veladas sobre retirar os EUA da Otan abalaram profundamente a região.

Mas a visão de que a Europa tem de assumir mais responsabilidade financeira por sua própria defesa agora é generalizada e intensificou com urgência a pressão por uma melhor unificação das defesas europeias.

A coordenação, porém, enfrenta várias dificuldades intrínsecas. Conforme concluiu o relatório do do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, integrar a defesa da Europa “será um processo lento e trabalhoso, um esforço geracional”.

Os governos já estão destinando milhões ou bilhões de dólares à defesa — e, naturalmente, todos querem apoiar suas próprias indústrias e seus próprios trabalhadores. E sejam quais forem as necessidades gerais de defesa da Europa, a prioridade de cada nação é proteger suas fronteiras. A confiança é limitada mesmo entre membros da aliança.

“Nós achamos que somos amigos”, afirmou Gorgen Johansson, em Karlskoga, notando, porém, que durante a pandemia, quando houve escassez de respiradores, a Alemanha, que tinha excedente, parou de fornecer os equipamentos à Suécia, à Itália e a outros países que precisavam da ajuda.

“As conversas começaram”, afirmou Johansson a respeito dos esforços de melhorar a coordenação europeia. “A coisa sucederá rapidamente? Acho que não.

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