EUA perderam chance histórica com a vacina

A emergência global da vacina foi feita sob medida para melhorar a reputação manchada dos EUA. Com centavos de dólar, os EUA poderiam colocar sua bandeira na luta contra a pandemia e se mostrar capazes de dar aos pobres do mundo o que eles precisam, em vez de ficar dando lições à distância. Oportunidades geopolíticas como essa não surgem com muita frequência. Como oportunidade de demonstrar um autointeresse esclarecido, é comparável ao enorme programa de ajuda pós- guerra de George Marshall. Isso garantiu a lealdade da Europa Ocidental no começo da Guerra Fria. Um esforço de vacinação liderado pelos EUA poderia ter um impacto crítico no formato do que parece ser uma nova Guerra Fria com a China. 

Ainda há tempo para o presidente Joe Biden agarrar esse manto. Até agora, porém, ele está tratando o abismo global da vacina como uma prioridade secundária. Embora os EUA tenham prometido 1 bilhão de doses para os países mais pobres do mundo, apenas 111 milhões foram distribuídos, o que é suficiente para dar uma dose a 5% da população africana, segundo o Banco Mundial. Por sua vez, os EUA garantiram duas vezes e meia o que precisam para a sua população, o que deixará um excesso de mais de 1 bilhão de doses. Alguns países como o Canadá, que encomendaram oito vezes mais do que precisam, são ainda mais solipsistas. No geral, os países do G7 encomendaram 2,9 bilhões a mais de vacinas do que o necessário. 

A covid-19 representa um teste para as democracias. Biden enquadrou a disputa de poder dos EUA com a China e a Rússia como uma batalha entre a democracia e a autocracia. A maioria dos pobres do mundo, e uma parcela crescente daqueles que vivem no Ocidente, presta pouca atenção a tais abstrações. O que move as pessoas em continentes como a África são as melhorias materiais em suas vidas. Na semana que vem Biden será o anfitrião de uma cúpula virtual sobre a democracia – uma peça central de sua política externa. Ela deverá ser um grande contraste com o desprezo escancarado de Donald Trump pela diplomacia baseada nos valores. Na prática, a vacinação faria muito mais do que mil dessas reuniões de cúpula para chamar a atenção do mundo. 

Ajudar outros países também melhoraria as perspectivas de Biden em casa. Em uma semana, as notícias sobre a variante ômicron levaram a rebaixamentos das perspectivas de crescimento dos EUA e aumento das previsões de inflação. A piora do cenário já está impondo custos bem maiores à economia dos EUA do que o “dinheiro miúdo” que seria vacinar o mundo. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estimou neste ano que custaria US$ 50 bilhões vacinar 60% da população mundial até a metade de 2022. Mesmo que isso esteja subestimado, trata-se de um gasto de menos de 3% do projeto de lei “Reconstruir Melhor” de Biden. 

Como sempre, a política interna está monopolizando as discussões na Casa Branca. Embora o chefe de Gabinete de Biden, Ron Klain, tenha comandado a unidade de pandemia de Barack Obama quando houve um surto de ebola em 2014, a prioridade de Klain no momento é melhorar as chances do Partido Democrata de vencer as eleições de legislativas no ano que vem. Biden diz coisas certas sobre as vacinas globais. Mas as ações não correspondem às promessas. Não há um czar do governo para liderar o esforço. Dada a dificuldade kafkiana de fazer com que o sistema interagências de Washington faça qualquer coisa rapidamente, apenas um grande nome com a marca pessoal de Biden poderia galvanizar o sistema. Ninguém sabe quem é essa pessoa. Jake Sullivan, assessor de Segurança Nacional, tem incêndios para apagar. Samantha Power, diretora da USAID, seria uma escolha óbvia. Já passou da hora de alguém em sua posição receber o controle. 

A segunda dor de cabeça de Biden são os republicanos, que veem a covid-19 como uma oportunidade para enterrar mais a sua popularidade. O partido ameaça paralisar o governo dos EUA se os democratas não desistirem de proposta de Biden de obrigar as grandes empresas a exigir que seus funcionários se vacinem, decisão que agora está nas mãos de juízes nomeados por Trump. Diante de tanto cinismo com um vírus que já matou 780 mil americanos, a distração de Biden é compreensível. Mas ele é o único americano que pode aproveitar o momento e transformar a posição do país. 

Às vezes a cautela é a posição mais arriscada de todas. Na última década o mundo foi alertado sobre uma pandemia que se aproximava e pouco fez para se preparar. Isso é uma coisa. Os alertas de hoje sobre novas variantes não são teóricos. Vemos as convulsões globais instantâneas. Se alguma vez houve uma oportunidade para os EUA darem um passo à frente, agora é a hora.

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/12/03/eua-perderam-chance-historica-com-a-covid.ghtml

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