Estratégia de Kiev de invadir a Rússia é arriscada, mas pode gerar bons ganhos

A contraofensiva surpresa da Ucrânia na região de Kursk, na Rússia — que é o maior avanço de qualquer dos dois lados desde que conseguiu liberar rapidamente o território ocupado pela Rússia em Kharkiv, no fim de 2022 — é mais do que nada o usada. Também é uma aposta enorme. Tirar da defesa da frente oriental algumas de suas melhores tropas pode parecer imprudente. Mas se Kiev puder evitar que a contraofensiva se torne um esforço custoso demais, é possível que as vantagens consigam superar muito os riscos. 

O avanço da Ucrânia de mais de 30 quilômetros para além de sua fronteira começou na terça-feira passada e marca a primeira vez em que a Rússia é invadida por tropas estrangeiras desde a 2a Guerra. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, só a confirmou no sábado e falou pouco sobre seus objetivos. Mas tentar virar o jogo contra um agressor ou acabar com um impasse militar por meio de uma investida de grande impacto no território do adversário é uma tática que tem longa tradição. Neste caso, ela poderia tirar algumas forças russas da região de Donbass, onde Moscou tem tido ganhos seguidos, embora custosos, este ano, e aliviar um pouco a pressão sobre as defesas da Ucrânia.

A operação também expõe e explora a maior vulnerabilidade da Rússia: suas vastas fronteiras. E pode obrigar Moscou a deslocar tropas e equipamentos que seriam usados na Ucrânia para defender essas fronteiras contra incursões semelhantes em outras áreas. Um presidente Vladimir Putin visivelmente irritado não vai querer permitir que isso aconteça de novo. 

De fato, talvez o maior impacto do avanço da Ucrânia seja psicológico. Para os ucranianos cansados dos quase dois anos e meio de guerra, que as pesquisas sugerem que se tornaram mais abertos a negociações de paz, a contraofensiva é uma demonstração de que seu exército ainda é capaz de choques positivos. Na Rússia, ela abre um rombo na narrativa de invencibilidade que o Kremlin se esforça tanto para manter. Algumas notícias de meios de comunicação locais sugerem medo e confusão em Kursk e na região vizinha de Belgorod, com milhares de pessoas evacuadas das áreas da fronteira.

A Ucrânia também aprendeu que o êxito no campo de batalha é a melhor maneira de convencer seus aliados internacionais a aumentar o fornecimento de equipamentos e ajuda militar. Ao executar um ataque que parece ter grande mobilidade com o uso de veículos blindados e defesas aéreas fornecidos pelo Ocidente, Kiev passa às capitais ocidentais a mensagem de que seu apoio não é em vão. E, embora existam grandes dúvidas sobre se o país tem pessoal e equipamentos suficientes para manter seus ganhos a longo prazo, ocupar uma parte do território russo pode fortalecer sua posição em eventuais negociações com Moscou. 

Um grande risco da operação da Ucrânia é que ela não só pode ser desalojada à força de Kursk, como perder tropas e equipamentos em tal quantidade que prejudique sua capacidade de conter os russos em outras regiões. Outro risco é que a Rússia, sob a alegação de que sua integridade territorial está em perigo, suba o tom das hostilidades. Putin não precisa de grandes pretextos para brandir a ameaça de seu considerável poder nuclear. 

No entanto, apesar de todo o valor que isso tem para Kiev em termos de propaganda, na realidade tomar parte de uma região russa dificilmente pode ser considerado como uma ameaça à sobrevivência da Rússia. E existe um valor dissuasório no fato de aliados ocidentais demonstrarem sua disposição de apoiar uma ação decisiva de Kiev. Capitais ocidentais, que parecem ter sido pegas de surpresa pela contraofensiva ucraniana, indicaram, corretamente, sua aprovação implícita em comentários públicos. Elas defenderam o direito de Kiev de usar armas fornecidas pelo Ocidente em suas operações em Kursk — e observaram que a lei internacional prevê que um país que se está se defendendo de um ataque estrangeiro também pode fazê-lo no território do agressor.

O avanço da Ucrânia na Rússia ainda pode se revelar um ponto de virada, um erro estratégico ou nenhum dos dois. Mas conseguir um êxito militar, ou ganhos militares suficientes para sustentar uma ação diplomática eficaz, muitas vezes exige jogadas ousadas. O presidente da Ucrânia acaba de fazer uma, e não pela primeira vez. 

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