Como Rússia driblou as sanções com a ajuda de países amigos

Algo estranho ocorreu com os smartphones na Armênia no verão passado. O valor das importações de celulares da minúscula ex-república soviética começou a aumentar em até mais de dez vezes em relação aos meses anteriores. Ao mesmo tempo, a Armênia registrou uma explosão de exportações de smartphones para uma aliada confrangida e isolada: a Rússia.

A tendência, que se repetiu em outros países da Ásia no ano passado em relação a máquinas de lavar, chips de computador e outros produtos, evidencia uma das novas tábuas de salvação que mantêm viva a economia russa.

Dados recentes mostram aumentos no comércio de vizinhos e aliados de Moscou sugerindo que países como TurquiaChinaBelarusCasaquistão e Quirguistão estão se apresentando para fornecer à Rússia muitos dos produtos que os países ocidentais tentaram bloquear como punição por sua invasão à Ucrânia.

Essas sanções — que incluem restrições sobre os maiores bancos russos, assim como limitações a vendas de tecnologia que o Exército russo poderia usar — estão bloqueando acesso a uma série de produtos. Regularmente emergem da Rússia relatos sobre consumidores frustrados com o mercadorias caras ou de má qualidade, seja leite, eletrodomésticos, programas de computador ou medicamentos, afirmou Maria Snegovaia, pesquisadora-sênior para Rússia e Eurásia do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, durante um evento realizado no instituto em janeiro.

Mesmo assim, o comércio russo parece ter em grande medida retornado ao ponto que estava antes da invasão à Ucrânia, em fevereiro do ano passado. Analistas estimam que as importações russas podem já ter se recuperado, alcançando os níveis anteriores à guerra; ou logo o farão, dependendo dos parâmetros.

Em parte isso pode ocorrer porque muitos países perceberam que é difícil largar a Rússia. Pesquisas recentes constataram que menos de 9% das empresas com base na União Europeia e nos países do Grupo dos 7 se livraram de alguma subsidiária russa. E firmas de monitoramento de tráfego marítimo observaram um aumento na atividade de frotas comerciais que pode estar ajudando a Rússia a exportar sua energia, aparentemente contornando as restrições impostas pelo Ocidente a essas vendas.

Mesmo que os países ocidentais ainda não tenham banido o comércio de produtos como telefones celular e máquinas de lavar para a Rússia, outras penalidades amplas são esperadas para constranger sua economia. Elas incluem um teto no preço que a Rússia poderá cobrar por seu petróleo, assim como restrições no acesso a semicondutores e outras tecnologias cruciais.

Algumas empresas, incluindo H&M, IBM, Volkswagen e Maersk, suspenderam operações na Rússia após a invasão citando motivações morais e logísticas. Mas a economia russa tem se provado surpreendentemente resiliente, o que levanta dúvidas sobre a eficácia das sanções do Ocidente. Países têm tido dificuldade em reduzir sua dependência em relação à Rússia para obter energia e outras commodities básicas, e o banco central russo conseguiu sustentar o valor do rublo e manter estáveis os mercados financeiros.

Na segunda-feira, o Fundo Monetário Internacional afirmou que sua atual previsão de crescimento para a economia russa este ano é de 0,3% — uma melhoria acentuada em relação à estimativa anterior, de 2,3% de contração.

O FMI afirmou também que sua expectativa é que o volume de exportações de petróleo russo permaneça relativamente forte sob o atual teto de preço e que o comércio da Rússia continue a ser redirecionado a países que não lhe impuseram sanções.

A maioria dos navios de contêiner parou de levar ao porto de São Petersburgo mercadorias como telefones, máquinas de lavar e autopeças. Em vez disso, esses produtos têm chegado à Rússia em caminhões ou trens vindos de Belarus, China e Casaquistão. A Fesco, uma empresa russa de frete, acrescentou novas embarcações e novos portos de escala para uma rota com a Turquia que transporta produtos industriais russos e eletrodomésticos e eletrônicos estrangeiros entre Novorossiisk e Istambul.

Sergei Aleksashenko, ex-vice-ministro das Finanças da Federação Russa, afirmou em um evento este mês que 2023 seria “um ano difícil” para a economia russa, mas não haveria “nenhuma catástrofe, nenhum colapso”.

Alguns setores da economia russa enfrentam dificuldades, afirmou ele, apontando para fábricas de veículos que fecharam depois de não conseguir mais adquirir peças de AlemanhaFrançaJapão e Coreia do Sul. Mas gastos militares e preços de energia mais elevados ajudaram a escorar a economia russa no ano passado.

“Não podemos dizer que a economia russa está em frangalhos, destruída, que faltam a Putin recursos para continuar sua guerra”, afirmou Aleksashenko, referindo-se ao presidente Vladimir Putin. “Não, isso não é verdade.”

A Rússia parou de publicar dados de comércio depois que invadiu a Ucrânia. Mas analistas e economistas ainda podem tirar conclusões sobre seus padrões comerciais somando o volume de comércio com a Rússia informado por outros países.

Matthew Klein, comentarista de economia e coautor de “Trade Wars Are Class Wars” (Guerras comerciais são conflitos de classes), analisa as consequências desse buraco do tamanho da Rússia na economia global. De acordo com seus cálculos, o valor das exportações globais destinadas à Rússia em novembro foi apenas 15% menor do que a média mensal anterior à invasão.

Segundo Klein, é bastante provável que as exportações globais para a Rússia tenham se recuperado completamente em dezembro, apesar de muitos países ainda não terem publicado seus dados comerciais sobre o mês. “A maior parte dessa recuperação foi ocasionada em geral por China e Turquia, particularmente”, disse Klein.

Não está claro quanto desse comércio viola as sanções impostas por EUA e Europa, mas os padrões, afirmou ele, são “suspeitos”. “Isso seria consistente com a ideia de que sempre há maneiras de contornar algumas das sanções.”

A organização sem fins lucrativos Silverado Policy Accelerator, de Washington, publicou recentemente uma análise similar, estimando que em setembro o valor das importações russas havia excedido os níveis anteriores à guerra.

Um dos estudos de caso desse relatório foi o salto nas vendas armênias de smartphones. Andrew David, diretor-sênior de pesquisa e análise da Silverado, afirmou que as tendências refletem como as cadeias de fornecimento mudaram para continuar a prover mercadorias à Rússia.

Samsung e Apple, anteriormente grandes fornecedoras de celulares na Rússia, se retiraram do mercado russo após a invasão. A presença de marcas populares de smartphones da China, como Xiaomi, Realme e Honor, também diminuiu à medida que as empresas tentavam entender e aprendiam a lidar com as novas restrições sobre envio de tecnologia para a Rússia ou realização de pagamentos internacionais para empresas russas.

Mas após um “período de ajuste”, as marcas chinesas começaram a decolar na Rússia, afirmou David. O total de exportações chinesas para a Rússia alcançou uma alta recorde em dezembro, o que ajudou a compensar a vertiginosa queda no comércio russo com a Europa. Os celulares Apple e Samsung também parecem ter encontrado sua própria maneira de voltar para a Rússia, enviados a partir de países amigos na vizinhança.

“A Armênia certamente não está só”, afirmou David. “Muita coisa vem através da Ásia centro-ocidental, da Turquia e das ex-repúblicas soviéticas.”

Carregamentos de outros produtos para a Rússia, como carros de passeio, também foram retomados. E a China aumentou as exportações de semicondutores para a Rússia, mas suas importações totais de chips permanecem menores que os níveis anteriores à guerra.

Uma grande questão em aberto é quão efetivamente o teto de preço imposto pelo Ocidente sobre o petróleo russo confrangerá o lucro da Rússia com o insumo este ano.

O teto permite que a Rússia venda petróleo globalmente usando seguros marítimos e financiamentos de entes ocidentais somente se o preço do barril não exceder US$ 60. Esse limite, que é essencialmente uma exceção às sanções do Grupo dos 7, é projetado para manter o petróleo fluindo nos mercados globais ao mesmo tempo que limita os ganhos do governo russo com o insumo.

Alguns analistas sugerem que a Rússia está procurando maneiras de contornar esse esforço usando navios que não dependem de financiamentos ou seguradoras ocidentais.

Ami Daniel, diretor-executivo da empresa de dados marítimos Windward, afirmou que observou centenas de exemplos em que indivíduos de países como Emirados Árabes Unidos, Índia, China, Paquistão, Indonésia e Malásia compraram embarcações para tentar estabelecer o que pareceu ser uma rede não ocidental de comércio para a Rússia. “Basicamente, a Rússia tem se equipado para ser capaz de fazer comércio ilegal”, disse ele.

Daniel afirmou que sua firma também observou uma acentuada elevação no que pareceram ser esforços russos para transgredir sanções do Ocidente. Os movimentos incluem transferências de petróleo russo entre navios em pontos remotos em alto-mar, em águas internacionais que não estão sob jurisdição de nenhuma Marinha nacional, além tentativas de mascarar atividades de navios desligando rastreadores satelitais que registram sua localização ou transmitindo coordenadas falsas.

Grande parte dessa atividade tem ocorrido no meio do Oceano Atlântico. Mas após a imprensa noticiar práticas suspeitas na região, sua concentração se moveu para o sul, até as proximidades da costa da África Ocidental, disse Daniel. “A coisa está explodindo”, afirmou ele sobre as práticas clandestinas de comércio internacional. “Isso ocorre em escala industrial.”

Até aqui, o teto de preço sobre o petróleo russo parece estar alcançando seu objetivo de reduzir o valor que a Rússia consegue cobrar ao mesmo tempo que mantém a oferta internacional do insumo. Mas resta saber se a frota de navios nas sombras é grande o suficiente para permitir à Rússia comercializar petróleo por um preço mais elevado que o teto, afirmou Ben Cahill, pesquisador-sênior do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, durante um painel de discussão, em janeiro.

“Se essa frota for grande o suficiente para a Rússia realmente operar fora do alcance” dos países do Grupo dos 7, o teto provavelmente “não surtirá o peso que os formuladores de políticas pretenderam”, afirmou Cahill. “Acho que saberemos em um par de meses.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

https://www.estadao.com.br/internacional/como-a-russia-driblou-as-sancoes-do-ocidente-com-a-ajuda-de-paises-amigos/

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