Como a IA e o DNA estão desvendando os mistérios das cadeias de suprimentos globais

The New York Times; Em uma descaroçadora de algodão no vale de San Joaquin, na Califórnia, uma máquina quadrada ajuda a borrifar uma névoa fina, contendo bilhões de moléculas de DNA, sobre o algodão Pima recém-limpo.

Esse DNA funcionará como uma espécie de código de barras minúsculo, aninhado entre as fibras macias quando forem transportadas para fábricas na Índia. Lá, o algodão será transformado em fios e tecido em lençóis, antes de chegar às prateleiras das lojas da Costco nos Estados Unidos. A qualquer momento, a Costco pode testar a presença do DNA para garantir que seu algodão cultivado nos Estados Unidos não foi substituído por materiais mais baratos —como o algodão da região chinesa de Xinjiang, que é proibido nos Estados Unidos por causa de suas ligações com trabalho forçado.

Em meio à crescente preocupação com a opacidade e os abusos nas cadeias de suprimentos globais, empresas e funcionários do governo estão recorrendo cada vez mais a tecnologias como rastreamento de DNA, inteligência artificial e blockchains para 

As empresas dos Estados Unidos agora estão sujeitas a novas regras que exigem que elas provem que seus produtos são feitos sem trabalho forçado, ou poderão ser apreendidos na fronteira. Funcionários da alfândega dos EUA disseram em março que já haviam detido quase US$ 1 bilhão (R$ 5,067 bilhões) em carregamentos vindos dos Estados Unidos que eram suspeitos de alguma ligação com Xinjiang. Os produtos da região estão proibidos desde junho de 2022.

Os clientes também estão exigindo provas de que produtos caros e sofisticados —como diamantes livres de conflitos, algodão orgânico, atum para sushi ou mel de Manuka— são genuínos e produzidos de maneira ética e ambientalmente sustentável.

Isso impôs uma nova realidade às empresas que há muito dependem de um emaranhado de fábricas globais para sua produção. Mais que nunca, as empresas devem ser capazes de explicar de onde realmente vêm seus produtos.

A tarefa pode parecer simples, mas pode ser surpreendentemente complicada. Isso porque as cadeias de suprimentos internacionais que as empresas construíram nas últimas décadas para cortar custos e diversificar a oferta de produtos tornaram-se surpreendentemente complexas. Desde 2000, o valor dos bens intermediários usados para fabricar produtos que são comercializados internacionalmente triplicou, impulsionado em parte pelas fábricas em expansão na China.

Uma grande empresa multinacional pode comprar peças, materiais ou serviços de milhares de fornecedores em todo o mundo. Uma das maiores empresas desse tipo, a Procter & Gamble, proprietária de marcas como Tide, Crest e Pampers, tem cerca de 50 mil fornecedores diretos. Cada um desses fornecedores, por sua vez, pode depender de centenas de outras empresas para obter as peças usadas em seu produto —e assim por diante, em muitos níveis da cadeia de suprimentos.

Para fazer um par de jeans, por exemplo, várias empresas devem cultivar e limpar o algodão, transformá-lo em fio, tingi-lo, tecê-lo, cortar o tecido em moldes e costurar as calças. Outras redes de empresas extraem, fundem ou processam latão, níquel ou alumínio que é trabalhado no zíper, ou fabricam os produtos químicos usados no corante índigo sintético.

“As cadeias de suprimentos são como uma tigela de espaguete”, disse James McGregor, presidente para a região da grande China na consultoria APCO Worldwide. “Eles são totalmente misturados. Você não sabe de onde as coisas vêm.”

Diante desses desafios, algumas empresas estão recorrendo a métodos alternativos, nem todos comprovados, para tentar inspecionar suas cadeias de suprimentos.

Algumas —como a que borrifa a névoa de DNA no algodão, a Applied DNA Sciences— estão usando processos científicos para marcar ou testar um atributo físico do próprio bem, para descobrir por onde ele viajou no percurso das fábricas ao consumidor.

A Applied DNA usou suas etiquetas de DNA sintéticas, cada uma com um bilionésimo do tamanho de um grão de açúcar, para rastrear microcircuitos produzidos para o Departamento de Defesa, rastrear cadeias de suprimentos de cannabis para garantir a pureza do produto e até mesmo para borrifar ladrões que tentaram assaltar caixas eletrônicos na Suécia, levando a várias prisões.

MeiLin Wan, vice-presidente de têxteis da Applied DNA, disse que os novos regulamentos estão criando um “ponto de inflexão para a transparência real”.

“Definitivamente há muito mais interesse”, acrescentou ela.

A indústria do algodão foi uma das primeiras a adotar tecnologias de rastreamento, em parte por causa de transgressões anteriores. Em meados da década de 2010, Target, Walmart e Bed Bath & Beyond enfrentaram recalls de produtos caros ou ações judiciais depois que se verificou que os lençóis de “algodão egípcio” que vendiam eram feitos com matéria-prima de outro lugar. Uma investigação do New York Times no ano passado documentou que a indústria do “algodão orgânico” também estava repleta de fraudes. 

Além da névoa de DNA que aplica como marcador, a Applied DNA pode descobrir de onde vem o algodão sequenciando o DNA do próprio material ou analisando seus isótopos, que são variações nos átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio. As diferenças na precipitação de chuva, latitude, temperatura e condições do solo fazem que esses átomos variem ligeiramente entre as regiões do mundo, permitindo aos pesquisadores mapear a origem do algodão em um par de meias ou uma toalha de banho.

Outras empresas recorrem à tecnologia digital para mapear cadeias de suprimentos, criando e analisando bancos de dados complexos de propriedade corporativa e comércio.

Algumas firmas, por exemplo, estão usando a tecnologia blockchain para criar um token digital para cada produto que uma fábrica produz. À medida que esse produto —uma lata de caviar, digamos, ou um lote de café— passa pela cadeia de suprimentos, seu gêmeo digital é codificado com informações sobre como foi transportado e processado, fornecendo um registro transparente para empresas e consumidores.

Outras empresas utilizam bancos de dados ou inteligência artificial para vasculhar vastas redes de fornecedores em busca de elos distantes com entidades proibidas ou para detectar padrões comerciais incomuns que indiquem fraude —investigações que podem levar anos para ser realizadas sem computação potente.

A Sayari, fornecedora de inteligência de risco corporativo que desenvolveu uma plataforma que combina dados de bilhões de registros públicos emitidos globalmente, é uma dessas empresas. O serviço agora é usado por agentes alfandegários dos EUA, bem como por empresas privadas. Recentemente, Jessica Abell, vice-presidente de soluções da Sayari, passou a lista de fornecedores de um grande varejista dos EUA pela plataforma e observou dezenas de pequenas bandeiras vermelhas aparecerem ao lado dos nomes de empresas distantes.

“Estamos sinalizando não apenas as empresas chinesas que estão em Xinjiang, mas também explorando automaticamente suas redes comerciais e sinalizando as empresas diretamente conectadas a ela”, disse Abell. Cabe às empresas decidir o que fazer sobre sua exposição.

Estudos descobriram que a maioria das empresas tem surpreendentemente pouca visibilidade nos níveis superiores de suas cadeias de suprimentos, porque carecem de recursos ou incentivos para investigar. Em uma pesquisa de 2022 da McKinsey & Co., 45% dos entrevistados disseram que não tinham qualquer visibilidade da cadeia de suprimentos além de seus fornecedores imediatos.

Mas ficar no escuro não é mais viável para as empresas, principalmente as dos Estados Unidos, depois que a proibição imposta pelo Congresso à importação de produtos de Xinjiang —onde 100 mil membros de minorias étnicas supostamente trabalham em condições forçadas, segundo o governo dos EUA— entrou em vigor no ano passado.

As ligações de Xinjiang com certos produtos já são bem conhecidas. Especialistas estimam que cerca de uma em cada cinco roupas de algodão vendidas globalmente contém algodão ou fios de Xinjiang. A região também é responsável por mais de 40% do polissilício mundial, usado em painéis solares, e por 25% do extrato de tomate.

Mas outras indústrias, como automóveis, pisos de vinil e alumínio, também parecem ter conexões com fornecedores da região e estão sob maior escrutínio dos reguladores.

Ter uma visão completa de suas cadeias de suprimentos pode oferecer outros benefícios às empresas, como ajudá-las a recolher produtos defeituosos ou reduzir custos. A informação é cada vez mais necessária para estimar quanto dióxido de carbono é realmente emitido na produção de um bem, ou para satisfazer outras regras do governo que exigem que os produtos sejam provenientes de locais específicos –como as novas regras do governo Biden sobre créditos fiscais para veículos elétricos.

Os executivos dessas empresas de tecnologia dizem prever um futuro, talvez na próxima década, em que a maioria das cadeias de suprimentos será totalmente rastreável, resultado de regulamentações governamentais mais rígidas e da adoção mais ampla de tecnologias.

“É eminentemente factível”, disse Leonardo Bonanni, executivo-chefe da Sourcemap, que ajudou empresas como a fabricante de chocolate Mars a mapear suas cadeias de suprimentos. “Se você deseja ter acesso ao mercado dos EUA para seus produtos, é um preço pequeno a pagar, francamente.”

Outros expressam ceticismo sobre as limitações dessas tecnologias, incluindo seu custo. Embora a tecnologia da Applied DNA, por exemplo, adicione apenas US$ 0,05 (R$ 0,25) a US$ 0,07 (R$ 0,35) ao preço de uma peça de vestuário acabada, isso pode ser significativo para os varejistas que competem por margens estreitas.

E alguns expressam preocupações sobre precisão, incluindo, por exemplo, bancos de dados que podem sinalizar empresas incorretamente. Os investigadores ainda precisam estar no local, dizem eles, conversando com os trabalhadores e permanecendo alertas para sinais de trabalho forçado ou infantil que podem não aparecer nos registros digitais.

Justin Dillon, executivo-chefe da FRDM, empresa de software que ajuda as organizações a mapear suas cadeias de suprimentos, disse que há “muita angústia, muita confusão” entre as empresas que tentam atender às novas exigências do governo.

Os importadores estão “procurando itens para checar”, disse ele. “E a transparência nas cadeias de suprimentos é tanto uma arte quanto uma ciência. Quase nunca acontece.”

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/04/como-a-ia-e-o-dna-estao-desvendando-os-misterios-das-cadeias-de-suprimentos-globais.shtml

Comentários estão desabilitados para essa publicação