Ataque à Síria expôs um governo Trump mais convencional

A notícia de que os EUA fizeram ataque com mísseis no Oriente Médio normalmente não é motivo de comemoração. Mas foi indisfarçado o alívio com que o “establishment” americano de política externa saudou a decisão do governo Trump, na semana passada, de lançar uma saraivada de mísseis sobre a Síria. Colunistas liberais de jornais, senadores linha-dura e embaixadores dos países aliados se uniram num coro de aprovação.

Essa reação refletiu a repulsa generalizada ao uso, pelo regime Assad, de armas químicas contra civis e crianças. Mas a decisiva razão subjacente para a satisfação em Washington é a esperança de que as medidas do presidente Donald Trump mostrem que a polícia do mundo voltou a entrar em ação, como mostrou artigo do Financial Times , assinado por Gideon Rachman, publicado no Valor de 11/04.

O establishment de política externa de Washington, um grupo ironicamente rotulado de “bolha assassina” na Casa Branca de Barack Obama, está unido na convicção de que a disposição de usar o poderio militar é decisiva tanto para o prestígio dos EUA quanto para a estabilidade da ordem mundial. A não utilização da força por Obama para respaldar um veto americano ao uso de armas químicas na Síria, em 2013, criou inquietação nesse meio. E a retórica isolacionista da campanha eleitoral de Trump levou a um clima perto do desespero e ao temor de uma total abdicação do poder dos EUA.

Diante disso, a repentina conversão da Casa Branca de Trump à ação militar na Síria foi saudada como um ponto de inflexão. Já os defensores nacionalistas mais ardentes de Trump estão horrorizados. Ann Coulter, autora de “In Trump We Trust”, manifestou sua decepção no Tweeter, perguntando: “Por que se envolver em mais uma catástrofe muçulmana?”

Os ataques à Síria cristalizaram a crescente sensação de que as políticas externa e de segurança do governo Trump podem vir a ser mais convencionais do que seus críticos temiam, e do que seus partidários nacionalistas esperavam.

Nas últimas semanas acumularam-se os sinais de uma guinada em direção ao pensamento convencional. Trump, visivelmente, ignorou algumas de suas promessas mais radicais de política externa. Ele não rasgou o acordo nuclear com o Irã; não mudou a embaixada dos EUA em Israel para Jerusalém; migrou da hostilidade aberta em relação à União Europeia (UE) para um apoio cauteloso; não fez uma cúpula de velhos amigos com o presidente russo, Vladimir Putin.

Poucos dias antes dos ataques à Síria, foi anunciado que Steve Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca e o principal defensor do nacionalismo de “a América em primeiro lugar”, perdeu seu assento no Conselho de Segurança Nacional. O general Michael Flynn, que compartilhava muitos dos instintos radicais de Bannon, foi demitido como diretor do conselho em fevereiro. Foi substituído pelo general H.R. McMaster, admirado pelo establishment de relações exteriores. Além disso, algumas nomeações de escalão mais baixo para o conselho emitiram um recado interessante. A recém-instalada diretora para a Rússia e a Europa do conselho é Fiona Hill, notória crítica de Putin, que foi defenestrada do instituto de análise e pesquisa Brookings Institution, de centro.

Os ataques à Síria ocorreram quando Trump recebia Xi Jinping, o presidente chinês. O resultado da primeira cúpula entre EUA e China da era Trump foi, mais uma vez, mais convencional do que a retórica de campanha de Trump.

Durante a eleição, o candidato Trump acusou a China de “estuprar” os EUA e ameaçou adotar tarifas punitivas contra produtos chineses. Prometeu que não ofereceria aos dirigentes chineses refeições requintadas e que os levaria, em vez disso, ao McDonald’s. Mas, ao final, Trump ofereceu a Xi linguado com molho de champanhe e saiu da reunião elogiando a maravilhosa relação que criou com o líder chinês. O falatório sobre tarifas e confrontos marítimos deram lugar aos compromissos afáveis de sempre, ao estilo do establishment de relações exteriores, de diálogo conjunto e criação de grupos de estudo. Os chineses tiveram motivos para saírem satisfeitos, embora se sentindo um pouco atordoados.

Parte do establishment de Washington está esperançosa de que a coincidência entre os ataques à Síria e a reunião de cúpula com Xi possa atender a uma finalidade útil, enviando o recado a Coreia do Norte, Rússia, China e outros de que os EUA voltaram a ter um líder que se sente à vontade para usar da força militar.

Mas os tradicionalistas da política externa devem celebrar com cautela a aparente conversão de Trump. O ataque à Síria pode ser um ponto de inflexão, mas na direção errada. Há três riscos especiais.

Primeiro, a reviravolta de Trump com relação ao regime de Assad demonstra a sua volatilidade. Se ele, em 24 horas, joga fora um ano de retórica sobre a Síria, pode facilmente fazer o mesmo em reação ao próximo evento chocante.

Segundo, há o risco de que Trump, que é obcecado por seus índices de aprovação, perceba que os ataques militares aumentaram a sua popularidade e desenvolva gosto por esse tipo de coisa. Mas posteriores usos da força, contra a Coreia do Norte ou outro país, podem ser muito mais arriscados do que lançar alguns mísseis de cruzeiro contra uma base aérea síria.

Por fim, há o perigo evidente de escalada do conflito no Oriente Médio. Há poucos indícios de que Trump tenha pensado nos passos seguintes. Mas os riscos e contradições do ataque de mísseis na Síria são evidentes, e vão de uma reação militar russa até vantagens para o Estado Islâmico. O pessoal de relações exteriores deve pôr a champanhe de volta na geladeira e ficar ligado.

Comentários estão desabilitados para essa publicação