Uma das curiosidades da transformação do Reino Unido de potência imperial absoluta a símbolo do declínio geopolítico das potências ocidentais foi a resiliência da sua monarquia.
Encarnado pela rainha Elizabeth, o poder real britânico saiu reforçado do tragédia da princesa Diana, do movimento separatista escocês, e do mergulho no desconhecido do brexit. Até transformações sociais como a critica pós-colonial e o movimento Me Too, que chegaram ao coração de Buckingham pela mão de Meghan Markle e do príncipe Andrew, a deixaram incólume. Pelo menos até agora.
Elizabeth, que teve de gerir a crise de Suez nos primeiros anos do seu reino, desempenhou com mestria o seu papel de grande protetora da monarquia da opinião pública, sempre incendiada pela imprensa global.
Nos últimos anos, quando o prestígio outrora inabalável do Reino Unido foi ameaçado pela folia política desencadeada pelo brexit, o papel político de Elizabeth se estendeu muito além da monarquia. Ela se posicionou como a última adulta na sala de um país decorado pelas incertezas sobre o seu futuro.
Sua morte, por isso, exige não apenas a reinvenção da Coroa, mas da ideia de Nação do Reino Unido.
No contexto da maior crise econômica doméstica das últimas décadas, a próxima era da monarquia terá como missão história liderar o Reino Unido para o seu novo lugar no mundo, separado da União Europeia, com a relação especial com os Estados Unidos ameaçada, e a projeção asiática limitada pela assimilação de Hong Kong pela China e a guerra com a Rússia.
Uma agenda colossal para a qual as suas atuais lideranças podem não estar à altura. O agora rei Charles 3º é mais conhecido por sua propensão a acabar nas páginas das revistas de fofocas do que pela fineza política.
A recém-indicada Liz Truss é unanimemente descrita pela classe política britânica como a primeira ministra de transição de um projeto conservador em colapso. Ela chegou ao poder com um programa virado para os problemas materiais da sociedade, como o custo de vida, precisamente para se distanciar do romantismo alucinado de Boris Johnson.
Experiências históricas mostram que a capacidade de organizar as emoções é uma característica fundamental num momento como esse. Tony Blair usou o funeral de Diana para criar a “princesa do povo” e se impor como o político que encarnava o Reino Unido modernizador.
Elizabeth, do seu lado, recuperou o monopólio do afeto, contestado pela própria Diana, e iniciou as décadas mais gloriosas do seu reinado, pelas quais ela será lembrada.
Charles e Tuss não podem fracassar. A morte de Elizabeth pode ser a última oportunidade para a elite política voltar a colocar o Reino Unido no bonde da História.( Mathias Alencastro)