Amazon faz ‘delivery’ de monges no Japão

O monge budista de cabelo aparado acende o incenso no pequeno altar exatamente como os membros da sua ordem fazem há séculos. Enquanto o monge entoava sutras, Yutaka Kai fechou os olhos e orou pela mulher, que morreu no ano passado em decorrência de complicações de uma cirurgia substitutiva no joelho.

Kai, 68 anos, deixou de lado a fé budista da família ao sair de sua cidade natal décadas atrás, na zona rural, para trabalhar numa fábrica de pneus. Por isso, não encontrou nas imediações um templo em que pudesse ir no primeiro aniversário da morte da mulher, data considerada um marco para os budistas japoneses.

Entra em cena a internet. No Japão moderno, é possível encontrar um monge budista com poucos cliques, bastando recorrer à Amazon.com. “O preço é acessível e claramente informado”, disse o filho mais velho de Kai, Shuichi, 40 anos. “Não precisamos descobrir sozinhos de quanto deveria ser uma doação aceitável”, como mostrou matéria do The New York Times, assinada por Jonathan Soble, publicada no Estadão de 26/9.

O monge que participou da cerimônia de Kai, Junku Soko, faz parte de um negócio controverso que está perturbando as tradicionais cerimônias fúnebres japonesas. Num país em que regulamentações sufocaram boa parte da chamada economia dos “bicos” – o Uber, por exemplo, tem presença ínfima no país –, uma rede de monges freelance está avançando no improvável mercado da religião.

O empreendimento deles é considerado inapropriado por algumas pessoas e recebeu a condenação de lideranças budistas. Um abrangente grupo que representa as muitas seitas budistas do Japão se queixou publicamente depois que a Amazon começou a oferecer serviços de obosan-bin (“delivery de monges”) em seu site japonês no ano passado, em parceria com uma startup local.

Como funciona. Para agendar um monge pela Amazon, os usuários clicam em uma das muitas opções e a adicionam a um carrinho de compras, exatamente como fariam no caso de um par de sapatos. Os preços são fixos. Uma cerimônia básica no lar do morto custa 35 mil ienes (US$ 344). O pacote mais caro, que inclui uma segunda cerimônia no cemitério e um batismo budista póstumo, quase dobra de preço.

O serviço foi pensado originalmente pela startup Minrevi, com fins lucrativos. Antes de assinar um acordo com a Amazon no ano passado, a empresa construiu uma rede de 400 monges e começou a fazer os agendamentos em seu próprio site, que continua no ar, bem como agendamentos por telefone. A empresa diz ficar com cerca de 30% dos valores cobrados; o restante fica com o monge.

A empresa incorporou outros cem monges para atender à demanda gerada pela nova parceria com a Amazon, disse o porta-voz Jumpei Masano. Espera-se um aumento de 20% nos agendamentos este ano, chegando a cerca de 12 mil.

Preservação. Os monges e seus defensores dizem estar atendendo a necessidades reais. Eles afirmam que o serviço está ajudando a preservar as tradições do budismo ao torná-las acessíveis a milhões de japoneses que se afastaram da religião. “Os templos nos mandam velas de 10 ienes, mas cobram 100 ienes pelo serviço”, disse Soko, 39. “Estão protegendo os próprios interesses.”

Os argumentos desse tipo soarão familiares para quem quer que já tenha acompanhado a perturbação que as empresas de comércio eletrônico trazem para determinados setores da economia, da edição de livros até as companhias aéreas, táxis e hotéis.

No Japão, mesmo em segmentos muito menos ligados à sensibilidade do que a religião, os recém-chegados costumam ser recebidos com frieza, e as startups são mais raras do que em outros países ricos. Entre as explicações: escassez de capital de risco, a influência política exercida por empresas já consolidadas e uma cultura que valoriza mais a estabilidade do que a criatividade destrutiva que impulsiona o crescimento em países como os Estados Unidos.

Mas a religião pode ser uma exceção à regra. Trata-se de um assunto tão opaco – e tão distante do cotidiano de muitos japoneses modernos – que uma pequena dose de perturbação tecnológica pode se mostrar bem-vinda. Além de espiritual, a questão é material. Assim como ocorre com instituições religiosas em muitos outros países, os templos no Japão recebem generosas isenções fiscais.

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