Quando Meng Wanzhou voltou para casa na China, há pouco mais de uma semana, a herdeira do grupo de tecnologia Huawei prometeu aproveitar as lições dos quase três anos em que passou no limbo jurídico no Canadá, em benefício de sua companhia. “Toda a frustração e as dificuldades, gratidão e emoção, firmeza a responsabilidade se transformarão num impulso para nos levar adiante, com coragem, para a nossa luta total”, disse ela a uma multidão que lhe dava boas-vindas na pista do aeroporto de Shenzhen.
A Huawei de fato precisará de todo o ímpeto e coragem que puder reunir. Ao concordar com um acordo de adiamento das acusações sobre as alegações de violação das sanções dos Estados Unidos contra o Irã, Meng evitou a ameaça de uma longa sentença de prisão e encerrou um capítulo que segundo ela virou sua vida de cabeça para baixo. Mas sua empresa prevê continuar sendo alvo de processos e sanções dos EUA por muitos anos e está descobrindo como fazer negócios sob essa pressão.
Os EUA proibiram o uso de equipamentos da Huawei pelo governo federal, impediram as empresas americanas de vender para a Huawei sem uma licença de exportação e proibiram o fornecimento de quaisquer semicondutores criados ou fabricados com o uso de tecnologia e equipamentos americanos para qualquer equipamento da Huawei. Isso equivale a um bloqueio quase total de remessas de chips à empresa chinesa.
O impacto sobre o grupo foi brutal. No primeiro semestre deste ano as receitas caíram quase 30% em comparação ao mesmo período do ano passado. Foi a maior queda já registrada.
Como as restrições começaram a prejudicar os negócios tradicionais da Huawei, a companhia agora tenta se reinventar. Ele está trocando o desenvolvimento e venda de equipamentos de redes de telecomunicações e smartphones por áreas menos dependentes de suprimentos de chips estrangeiros – como os serviços em nuvem e softwares para carros inteligentes.
A Huawei está dobrando os esforços em pesquisas próprias e desenvolvimento, numa tentativa de escapar do estrangulamento causado pelas sanções americanas. Ela está investindo bastante para ser uma líder na emergente tecnologia 6G, para que outras empresas passem a ser dependentes de suas patentes – em vez da Huawei depender da importação de tecnologias dos EUA.
“A melhor maneira de descrever o clima na Huawei no momento e a maneira como lidamos com as coisas, é como se fôssemos uma coleção enorme de startups”, diz Henk Koopmans, diretor de pesquisa e desenvolvimento da empresa no Reino Unido.
Em jogo não está apenas o destino de uma das mais destacadas e bem-sucedidas companhias da China, mas também uma competição tecnológica mais ampla entre Pequim e Washington. Para as autoridades chinesas, a Huawei tem sido uma parte vital da rede de inovações do país.
“Muitos veem a Huawei como a única possibilidade da China inovar em semicondutores e telecomunicações”, afirma uma autoridade do governo de Shenzhen, o centro da indústria de tecnologia no sul da China, lar da Huawei. “Portanto, a Huawei precisa sobreviver. É uma missão nacional.”
As sanções contra a Huawei vêm tendo um duro impacto sobre seus principais negócios – os smartphones e a infraestrutura de telecomunicações.
Suas vendas de smartphones caíram mais de 47% no primeiro semestre deste ano, comparado ao mesmo período do ano passado. Na semana retrasada, o presidente rotativo Eric Xu previu que no ano como um todo a empresa perderá até US$ 40 bilhões de seus negócios com smartphones de US$ 50 bilhões, uma queda que segundo analistas derrubará a participação dos negócios de consumo nas receitas totais da Huawei de 42% no começo deste ano para pouco mais de 30%.
“Os gargalos de componentes da Huawei estão agora começando a aparecer”, diz Ben Stanton, um analista de smartphones da consultoria Canalys. “Os estoques estão diminuindo e é quase certo que seu volume continuará caindo a cada trimestre.” Observando que o braço de smartphones da Huawei recuou para o mercado interno chinês, ele acrescenta que sua força em lugares como a Europa “evaporou completamente”.
No negócio de equipamentos de rede, o declínio está acontecendo mais lentamente, em parte porque os ciclos dos produtos são mais longos.
A Dell’Oro, uma empresa de pesquisa com foco em telecomunicações, disse em uma nota neste ano que embora a Huawei não possa mais comprar chips específicos para aplicativos personalizados para seus produtos de telecomunicações, ela estava assegurando aos analistas que tinha estoques suficientes para manter as operações de infraestrutura em funcionamento no curto prazo.
Em resposta a essas perdas, o primeiro grande esforço foi fortalecer as capacidades de software da Huawei para reduzir sua dependência da produção de hardware, que ela terá cada vez mais dificuldade para fornecer sem acesso a suprimentos de chips.
Xu disse a jornalistas na semana retrasada que embora a China esteja obtendo resultados encorajadores em seus esforços para desenvolver sua própria indústria de semicondutores, levará “muito tempo” até que os desafios de fornecimento da Huawei possam ser totalmente resolvidos.
O principal negócio voltado para os softwares que a Huawei está se esforçando para construir são os serviços em nuvem. Algumas das funções de uma rede de telecomunicações tradicionalmente desempenhadas por estações-base podem ser transferidas para processos de software na nuvem com tecnologia mais recente. Além disso, a Huawei está desenvolvendo rapidamente novos serviços em nuvem, que ela oferece para empresas e departamentos do governo. A companhia anunciou recentemente que pretende investir US$ 100 milhões nos próximos três anos para que pequenas e médias empresas se desenvolvam na Huawei Cloud.
Segundo a Canalys, os negócios da Huawei na nuvem cresceram 116% no primeiro trimestre deste ano, com ela passando a ter uma participação de 20% no mercado chinês de US$ 6 bilhões, atrás da Alibaba Cloud, mas à frente da Tencent. “Os resultados da Huawei Cloud foram impulsionados por clientes da internet e projetos governamentais, além de vitórias importantes no setor automobilístico. Ela é uma parte crescente dos negócios gerais da Huawei”, afirma Matthew Ball, analista-chefe da Canalys. Ele diz que embora 90% dos negócios estejam na China, a Huawei Cloud tem uma presença mais forte na América Latina, Europa, Oriente Médio e África, em comparação a Alibaba Cloud e Tencent Cloud.
Mas há limites para os negócios da Huawei na nuvem. Em julho a imprensa chinesa informou que a companhia estava estudando a venda de uma parte de seu negócio de servidores que funcionam em unidades de processamento central x86, depois que a licença de exportação desses componentes da Intel para a Huawei venceu. Os servidores são indispensáveis para as empresas da nuvem porque são neles que os dados são armazenados e grande parte de computação necessária para os serviços na nuvem é realizada. A Huawei e a Intel não quiseram comentar, mas especialistas do setor afirmam que o fornecimento de processadores é uma dor de cabeça para a Huawei.
“A venda das operações de servidores é bastante provável”, diz Ben Sheen, diretor de pesquisas de semicondutores para infraestrutura de rede e comunicações da consultoria IDC. “O CPU é um componente central e se a Intel não puder enviá-lo, a Huawei terá um grande problema.”
Assim como acontece no negócio de equipamentos de rede, provedores de serviços em nuvem como Amazon Web Services ou Google tentam aumentar o desempenho melhorando seus softwares. Se a Huawei conseguir o mesmo, ela terá uma necessidade menos urgente de obter novos suprimentos de processadores.
“Nos smartphones, sua participação na receita cai muito rapidamente se você não tiver os chips mais recentes. Na nuvem, você pode continuar mantendo um negócio decente por muito mais tempo e talvez até mesmo ampliar sua receita se investir em diferenciação de software”, afirma Jue Wang, sócio da prática de tecnologia da consultoria Bain.
Empresas como Intel e AMD lançam novas CPUs todos os anos, mas a maioria dos servidores dos provedores de serviços em nuvem roda em processadores de dois a cinco anos de idade. As empresas da nuvem geram cada vez mais receitas investindo em novos serviços e ferramentas de inteligência artificial (IA) – mesmo que seus servidores rodem em chips mais antigos. “Mas em algum momento você precisará de novos. Você não pode oferecer serviços em nuvem sem CPUs”, diz Wang.
Um dos campos em que a Huawei considera relativamente fácil conseguir novos negócios é na ajuda à digitalização de setores que estão atrasados na adoção da tecnologia da informação (TI). Ela está oferecendo ferramentas de telecomunicações, TI e software para empresas chinesas de setores como mineração de carvão e operações portuárias, permitindo a elas reduzir os custos e aumentar a segurança. Motivadas por essas operações, as receitas de negócios corporativos da Huawei cresceram 23% no ano passado e 18% no primeiro semestre deste ano.
“Os negócios corporativos provavelmente continuarão a ser um ponto de crescimento para a Huawei”, diz Ethan Qi, analista da Counterpoint Research, que prevê que as receitas nesse segmento aumentarão até 15% ao ano nos próximos anos.
Ainda assim a Huawei se preocupa com o fato de que isso não será suficiente para compensar o golpe mortal que as sanções dos EUA estão causando ao negócio de smartphones. As novas posições no setor “poderão não ser capazes de compensar as receitas perdidas em dez anos”, disse Xu a jornalistas na semana retrasada.
Frustrada em seus principais mercados, a Huawei está fazendo algumas apostas notáveis em novas áreas. Uma das maiores é em veículos elétricos e autônomos. A Huawei fez sua primeira incursão de pesquisa e desenvolvimento em automóveis em 2014, mas agora a companhia está reforçando drasticamente esse compromisso, com planos para formar uma equipe de pesquisa e desenvolvimento de 5.000 pessoas e investir US$ 1 bilhão no segmento neste ano.
A companhia afirma que não fabricará automóveis, mas seus engenheiros claramente estão olhando para tudo que vai além disso. “Inicialmente, pensamos que poderíamos ajudar o carro a se conectar, mas depois de um tempo percebemos que podemos também ajudar a torná-lo mais inteligente”, diz um diretor da Huawei.
Um veículo lançado pela montadora chinesa Beiqi no Salão do Automóvel de Xangai deste ano apresenta uma solução completa de eletrônicos embarcados desenvolvidos pela Huawei. Para essa mudança, a companhia está aproveitando os pontos fortes construídos ao longo dos anos em seus negócios de hardware de telecomunicações – executivos afirmam que a experiência na construção de estações-base que podem suportar condições climáticas extremas é útil porque os controles de temperatura são um requisito fundamental nos carros elétricos.
“Eles reorientaram suas equipes dos centros de pesquisa que administram na Europa: no passado, eles eram voltados para o 3G e o 4G, mas agora estão voltados para sistemas avançados de assistência ao motorista”, diz Jean-Christophe Eloy, CEO e presidente da Yole, uma consultoria francesa especializada em tecnologia.
Grande parte dos chips para eletrônica automotiva é feita com tecnologia de processamento mais madura, que não precisa ser importada. “Grande parte dessa tecnologia está disponível na China. Desse modo, o foco no setor automotivo também poderá ajudá-los a se livrar do problema de fornecimento de chips”, diz Eloy.
Mas os objetivos da Huawei vão muito além de manter o negócio funcionando no curto prazo: no mínimo, sua ambição de ser uma pioneira em tecnologia ficou ainda maior. Ren Zhengfei, fundador, presidente executivo e pai de Meng, está dando liberdade a alguns pesquisadores da Huawei para que eles se concentrem na ciência de base e explorem inovações tecnológicas mesmo sem um entendimento claro de suas possíveis aplicações nos negócios.
“Não exigiremos que vocês deixem seus afazeres e se juntem às tropas”, disse Ren ao pessoal da área de pesquisa e desenvolvimento em uma reunião em agosto. Afirmou que a equipe de pesquisa da HiSilicon, a unidade de design de chips da Huawei, será mantida mesmo com as sanções dos EUA tendo roubado da operação baseada em Shenzhen a chance de fabricar seus chips avançados.
“Permitimos que a HiSilicon continue escalando o Himalaia”, disse Ren. “A maioria de nós ficará aqui para plantar batatas, pastorear o gado e continuar enviando provisões para os alpinistas, porque não dá para cultivar arroz no Monte Everest.”
No ano passado a Huawei investiu 141,9 bilhões de yuans (US$ 22 bilhões) em pesquisa e desenvolvimento, quase 16% de sua receita. A determinação por trás desse foco nas pesquisas de ponta é o desejo de se tornar menos dependente de tecnologia estrangeira – ao mesmo tempo em que ela estabelece as bases para o crescimento dos royalties de propriedade intelectual.
No 5G, a Huawei é uma das maiores donas de patentes, forçando fabricantes de equipamentos concorrentes, como a Ericsson e a Nokia, a fazer certos pagamentos à Huawei mesmo que a empresa seja excluída de contratos 5G em muitos países ocidentais.
Exortando a equipe de pesquisas a buscar a liderança mundial em tecnologia, na reunião de agosto, Ren disse: “Nós pesquisamos o 6G como precaução, para aproveitar a frente de patentes, para ter certeza de que quando o 6G um dia realmente entrar em uso, não dependeremos de outros”. Ao elaborar os potenciais usos do 6G pela primeira vez, Ren disse que a tecnologia poderá – além do campo tradicional da conectividade das telecomunicações – ser usada para percepção e detecção, funções com potencial de uso em setores que vão da saúde à vigilância.
Essa expectativa cresceu a partir dos resultados da abordagem de “coleta de startups” adotada pelo chefe de pesquisa do Reino Unido, Koopmans. O incentivo de Ren para a Huawei olhar para a ciência de base está instilando o que ele espera que será uma mentalidade de startup em muitos dos funcionários da área de pesquisa e desenvolvimento da companhia.
Além disso, ela também está explorando um número crescente de startups em que investiu nos últimos anos. Engenheiros da Centre for Integrated Photonics, uma startup baseada em Ipswich, no leste da Inglaterra, que a Huawei comprou em 2012, recentemente desenvolveram um laser em um chip que pode direcionar a luz para um cabo de fibra ótica – uma alternativa à tecnologia já adotada, que envia pulsos de luz infravermelha pelo cabo. Os pesquisadores construíram eles mesmos o chip, usando a tecnologia de “fosfeto de índio”, em vez dos semicondutores convencionais à base de si – uma tecnologia controlada pelos e que dá a Washington um domínio que a Huawei está se esforçando para obter.
Koopmans diz que um uso futuro da tecnologia poderá ser a transferência de dados de sensores na pele que medem o teor de oxigênio no sangue em serviços remotos de saúde.
Ren não carece de ambição para as operações de pesquisa e desenvolvimento do grupo, mas admite que elas poderão não fornecer resultados no curto prazo.
“Algumas teorias e estudos podem não ser usados até cem ou duzentos anos depois de terem sido publicados pela primeira vez”, disse ele ao pessoal da área de pesquisa e desenvolvimento, lembrando-o que a importância das descobertas genéticas de Gregor Mendel só foi compreendida décadas depois. “Seu estudo pode até vir a ter um destino parecido com o dos quadros de van Gogh – ninguém se interessou por eles por mais de 100 anos, mas agora eles não têm preço”, disse ele. “Van Gogh morreu de fome.”