Maria Clara Bispo, aluna do curso de Jornalismo da ESPM-SP
No cenário global de hoje, quem analisa a China fica com a impressão que todo o resquício daquele estado comunista idealizado por Mao Tsé-Tung se foi. O país é hoje um gigante comercial, produz e exporta mais que qualquer outro no mundo. O PIB da China tem crescido em média 10% ao ano durante as últimas três décadas, um fenômeno nunca antes observado na história da geoeconomia. É inegável a qualquer um atento às notícias, que a China será – ou é – a maior economia do mundo. Apesar disso, se olharmos profundamente para as entranhas do país, veremos muito do legado de Mao.
Há 70 anos, quando o Partido Comunista assumiu o poder após uma guerra civil na China, o país já possuía a maior população do globo, a qual era majoritariamente composta por camponeses. Mao baseou-se nas ideias Marxistas, tirando-as completamente de contexto ao implantá-las no campo.
A empreitada chamada pelo líder de “o grande salto para frente” incentivou a criação de plantações comunitárias e proibiu a propriedade privada. Tal Plano causou uma insuficiência na produção de alimentos, o que gerou a morte de cerca de 40 milhões de pessoas por fome nos anos entre 1958 e 1962.
Após a morte de Mao Tsé-Tung, em meio a evidente crise econômica no país, seu sucessor, Deng Xiaoping, decide implantar medidas que provavelmente desagradariam o antecessor. Em 1978, a China implantou um programa que ficou conhecido como “reforma e abertura”. A ideia de um socialismo à la chinesa, no qual o país poderia se atirar ao comércio mundial, empolgava os chineses. Deng liberalizou a economia, permitiu o ressurgimento da propriedade privada, e descentralizou o poder, dando mais liberdades aos políticos locais. Um ano depois, viajou aos Estados Unidos, estabelecendo um marco na abertura de laços econômicos entre a China e o Ocidente.
Uma das principais bases dessa reforma foi a criação das Zonas Econômicas Especiais, chamadas ZEEs. Ainda nos tempos de hoje, tais zonas, são grandes oásis do capitalismo no território chinês, nas quais o investimento internacional e as trocas comerciais são totalmente legalizadas. O que a princípio era apenas um protótipo do governo chinês, acabou sendo um enorme sucesso econômico. Shenzhen, uma das primeiras ZEEs criadas, era uma vila de pescadores com cerca de 59 mil habitantes no momento em que a industrialização começou em 1980. Em 2016, a população da cidade passava de 12 milhões. Essa estratégia foi o que fez a China ascender em um ritmo nunca antes visto na economia global, mas também foi a responsável por colocá-la entre os países mais desiguais do mundo.
A enorme quantidade de mão-de-obra barata em concomitância com as portas recém-abertas de um mercado gigantesco, era um cenário perfeito para o investimento estrangeiro. A abertura de multinacionais e as novas oportunidades de trabalho causaram um enorme fluxo migratório do campo, para o litoral do país, o chamado êxodo rural chinês. Com milhões de pessoas vivendo nas ZEEs, poucos conquistaram o novo sonho chinês, a maioria apenas trocou o cenário de sua miséria do campo para a cidade. A qualidade de vida fora dos bairros nobres dessas cidades se tornou baixíssima, e as condições de trabalho extremamente precárias. Galpões fechados e abafados, com centenas de chineses em linhas de produção, eram e, ainda são, uma cena comum na “fábrica do mundo”.
A verdade é que, apesar de o presidente atual Xi Jinping ter prometido erradicar a pobreza no país até 2020, e da saída de impressionantes 700 milhões de chineses da linha da pobreza entre a reabertura econômica e 2016, a desigualdade segue crescendo. Em 2018, cerca de um milhão de pessoas viviam em abrigos subterrâneos em Pequim. Essas pessoas se encontravam em situações extremamente precárias vivendo muitas vezes em espaços menores que 4m2.
Ao passo que o número de bilionários no país cresce, 475 no total, casos como o da jovem Wu Huayan seguem chocando o país e o mundo. A estudante de 24 anos, sobreviveu com cerca de 2 yuans por dia (cerca de R$1,15), comendo apenas arroz e pimenta durante cinco anos. A jovem, que infelizmente veio a falecer, expôs um outro lado da economia mais próspera do mundo. Segundo um relatório do FMI, a China passou de moderadamente desigual em 1990, para se tornar um dos países mais desiguais do mundo em 2018. Em contrapartida, um relatório da WID (World Wealth and Income Database) mostrou que a parcela da riqueza detida pelos 1% mais ricos do país dobrou em 20 anos. Atingindo, assim, cerca de 30% da renda nacional no ano de 2015, a medida que os 50% mais pobres, possuem apenas 15% da referida renda, segundo o relatório de desigualdade global, de 2018.
“Sinto que a China é cada vez mais capitalista. As casas estão ficando cada vez mais caras e apenas os ricos podem comprá-las. Jovens profissionais como eu não conseguem ter a própria casa e dependem dos pais ou avós”. Disse Xiao Lin, uma mulher de 30 anos em entrevista à BBC. Lin, que atualmente reside em Pequim, se mudou do sudeste Chinês para estudar e trabalhar como intérprete.
Outra mudança severa que contradiz o estado socialista idealizado por Mao é no âmbito da saúde e da educação. O sistema de saúde particular é exclusivo para a classe alta. Sendo assim, os mais pobres ficam reféns de hospitais públicos superlotados, e de baixa qualidade. Na educação, são oferecidos apenas nove anos gratuitos, sendo o ensino médio e superior, pagos.
Toda essa estrutura tem se visto efetiva não só em perpetuar, mas em intensificar a desigualdade no país ao passo que deixa disponível um mar de mão de obra barata. E assim, a fábrica do mundo segue girando.