Luiz Guilherme Mello, Rafaela Valentini e Renan Leite, alunos da ESPM/SP
Era no tempo da Primeira República Espanhola. 1876. A Espanha enfrentava grave instabilidade política após os consecutivos fracassos do regime militarista (1843), da monarquia tradicional (1868) e da monarquia absolutista (1873), resultando em um período de 11 meses no qual o país teve quatro presidentes. A paz – que seria breve – chegou com Restauração Bourbônica e o reinado de Afonso XII, o Pacificador.
Nos anos que seguiram, a Espanha enfrentou perda de territórios, sucessivas ditaduras e, sobretudo, incessantes revoltas populares, que redundariam na Guerra Civil Espanhola, em 1936, que é considerada um dos estopins da Segunda Guerra Mundial e custou a vida de 500.000 a 1.000.000 de civis, além de abrir as portas para a ditadura do General Francisco Franco, que durou 36 anos.
Nesse contexto de instabilidade social e política nasceu e viveu o compositor, violonista e dramaturgo Manuel de Falla (1876-1946).
Para entendermos o desenvolvimento de sua obra, precisamos levar em conta dois fatores primordiais: sua paixão pela à música teve início pelas notas dos cantos e danças populares que ouvia de Ana La Morilla, servente da casa onde morava; além disso, Manuel acreditava que sua inclinação artística não era para a música, mas para a escrita. Forma-se, assim, um compositor com forte conexão afetiva à tradição popular espanhola e discurso já talhado para a prosa como um de seus fundamentos.
Sua primeira peça é o Nocturno, composto em 1896. Uma peça para piano solo, construída predominantemente sobre a tonalidade menor, cujas vozes se complementam com poucas dissonâncias, e que apresentava poucos traços da canção popular espanhola. Enquanto as notas graves se configuram em arpejos compostos, ou seja, contendo notas além da tríade do acorde, a voz aguda forma uma melodia geralmente simples, com grandes espaços para as notas únicas ou harmonizadas em terças.
Passados alguns anos, podemos ver o amadurecimento do discurso musical de Manuel de Falla, que retomou suas raízes e incorporou a tradição popular e a narrativa literária de forma mais explícita em sua atividade musical. Obras cênicas como El Amor Brujo, que conta a história de uma jovem cigana atormentada pelo fantasma de seu antigo amante, nos mostram como a semente plantada pelos árabes no final do século VII floresceu em solo espanhol e trouxe ao país latino os intervalos do trítono, da segunda menor e da segunda aumentada a escalas tradicionalmente menores com poucas dissonâncias diatônicas.
Pode-se notar pronunciada influência moura em Fuego Fatuo, parte da obra El Amor Brujo. O tema original da música traz uma frase exposta pelo clarinete com grande ênfase no intervalo de segunda menor, ambientando a música em um movimento quase hipnótico dado pelas tercinas das vozes mais graves. O constante uso das sétimas na harmonia gera a tensão que acompanha os prantos desesperados da voz principal, construída com foco em uma escala menor natural com ênfase nas quintas ascendentes. A interpretação de Paco de Lucía acentua tais características pois, ao arranjo original, é adicionada a presença percussiva, ora em tambores norte-africanos, ora nas tradicionais palmas flamencas. Nota-se também que os instrumentos de sopro assumem posições harmônicas de sétimas e terças descendentes muito similares às que se encontram presentes na Bossa Nova de nossa terra.
Por fim, podemos ver em Manuel de Falla traços de várias escolas e movimentos musicais, populares e eruditos, desde o Nocturno à Ópera Flamenca. O compositor deu base a uma reinvenção da música espanhola e grandes intérpretes como Camarón e Paco de Lucía, considerados alguns dos maiores expoentes do Flamenco moderno, certamente são responsáveis por boa parte da disseminação da cultura Espanhola por meio de sua música.