Uma voz lúcida do Irã

Por Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

“Quem se importa hoje com Jan Palach?”. Essa pergunta é feita pelo artista plástico iraniano Bahman Mohassess no documentário FIFI GRITA DE FELICIDADE, de Mitra Farahani, exibido na 37a. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Jan Palach foi o estudante tcheco que ateou fogo contra si mesmo para protestar contra a invasão russa na ex-Tchecoslováquia, em 1968. Esse apagamento da memória coletiva “diz muito sobre o estado das coisas”, completa Mohassess.

Farahani acompanha os últimos dois meses de vida, em 2006, em Roma, desse extraordinário pintor e escultor iraniano. Intercalando as filmagens com uma longa entrevista concedida pelo artista nos anos 70, ela constrói um filme delicado e profundo sobre um homem complexo e que não faz concessões de nenhuma natureza.

O título do filme é uma grande ironia. Tudo, na verdade, é muito amargo. A começar pelas representações que ele realiza do homem. São criaturas sem mãos, sem pés e sem rosto: “o ser multidimensional não existe mais”. É o mundo dos fragmentos, dos chats, do descartável. Do tempo fragmentado, da atenção que não se concentra em nada, da crise dos grandes sistemas filosóficos, da instabilidade do mercado financeiro, das igrejas-shopping centers, das guerras inventadas pelos interesses corporativos, dos estadistas marionetes. O mundo da destotalização do ser e do tempo, o mundo reduzido apenas a um balcão de negócios.

Pior. Segundo Mohassess isso tudo é elidido pela farsa dos direitos humanos: “Tente ser iraniano e entrar nos EUA. Democracia e ditadura se equivalem. Vivemos num mundo da ditadura dos direitos humanos. Um verme tem o direito de rastejar sobre a terra. Eu não tenho”.

Se abraçamos ou não essa ou outras ideias radicais do artista, não vem ao caso. Muito mais importante é perceber o seu caráter contestador e relativizador, esse substrato maior da arte que é sempre o de bagunçar o coreto e não aceitar as coisas como elas são, negando permanentemente a naturalização da História. Isso vem de encontro à proposta da Mostra, de constituir, como falamos aqui semana passada, um fórum mundial de debates sobre, entre tantas outras questões, o cerceamento das liberdades individual e coletiva. O que vem a calhar com o momento atual do Irã, quando o seu presidente nega o Holocausto, afirmando que este não existiu!

FIFI GRITA DE FELICIDADE terá sua última sessão nesta terça-feira (29.10.13), às 17h00, na Galeria Olido.

Outra obra-prima da Mostra é o filme russo CHAIKA, de Miguel Ángel Jimenez. Um retrato devastador do esfacelamento da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Será exibido ainda terça (dia 29, às 19h00, no ITAÚ FREI CANECA 2) e quinta (dia 31, às 19h40 na RESERVA CULTURAL).

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