Pedro de Santi
Na virada de 2016 para 2017, parecia haver um sentimento disseminado de tristeza. Posts em mídias sociais se despediam no ano como se dele emanasse uma aura ruim, que o ano novo viria dissipar. O começo não muito animador de 2017 logo gerou a brincadeira segundo a qual não estaríamos no ano novo, mas em 2016S, em referencia ao modelo de smartphone. Para quem lamentava a grande quantidade de celebridades falecidas em 2016, a morte de Zygmunt Bauman em 9 de janeiro já nos enquadrou na realidade cotidiana das perdas. O arauto do mundo líquido não nos deixaria crer numa substância temporal deixada para trás com o réveillon.
Uma mistura de cansaço de fim de ano de desencanto como mundo político e econômico nacional e mundial parecia cultivar uma tristeza coletiva.
Eis que ao final do ano foi publicado o livro A tinta da melancolia. Uma história cultural da tristeza (Cia das Letras, 2016), do crítico literário suíço Jean Starobinski.
Conheci alguns de seus livros nos anos 90, quando fazia meu doutorado. Aprendi muito com obras como: A invenção da liberdade (1964. No Brasil, Editora da UNESP, 1994); Jean Jacques Rousseau. A transparência e o obstáculo (1957. No Brasil, Cia das Letras, 1991); e, sobretudo, Montaigne em movimento (1982. No Brasil, Cia das Letras, 1993), diretamente relacionado com minha tese. Todos ligados ao iluminismo e à questão recorrente das “máscaras”, e tudo o que seu imaginário produz: a curiosidade pelo que se esconde por trás delas, o anseio por atravessá-las, a consciência de não ser possível despi-las, a nostalgia romântica de um mundo no qual elas não existiam.
O lançamento do livro atual me surpreendeu com a notícia de que ele está vivo, com 97 anos. E o livro contém trabalhos e ensaios desde 1960. O título faz uma referência ao próprio termo ‘melancolia’, que significa ‘bile negra’, componente dos 4 humores da teoria antiga grega. Esta teoria ligava o melancólico tanto à loucura quanto à genialidade e teve seus seguidores até o início da Modernidade. Tendo caído em seu potencial explicativo, manteve-se como metáfora poderosa da escuridão, negatividade, amargor, ranço da depressão.
Outra surpresa foi saber que ele é, além de crítico literário, médico. A primeira parte do livro foi baseada justamente em sua tese em psiquiatria de 1960: “História do tratamento da melancolia. Das origens a 1900”. Sua dupla formação lhe dá uma condição privilegiada para fazer um levantamento meticuloso e clínico de teorias e obras clássicas a respeito, desde Hipócrates.
A transição para as partes seguintes do livro traz a literatura sobre a melancolia, de seu sofrimento à sua condição de consciência trágica sobre a condição humana. Cada parte têm vida própria e produz uma sequência. Podemos nos aprofundar na temática de Tróia destruída, na poesia de Bauldelaire ou Madame de Staël.
E Starobinski se move por entre inúmeras facetas da tristeza sem descartar nenhuma: há a tristeza petrificante e de morte, da depressão clínica; há a nostalgia; há a tristeza reflexiva e sábia, ligada à genialidade e sensibilidade; e há a tristeza que se resolve em ironia.
Talvez todas elas se unam por aquele mesmo jogo das “máscaras” cujo estudo tanto interessou ao autor. Máscaras que denunciam o exílio de si mesmo imposto pela autoconsciência, e que não permite que embarquemos docilmente nas tecnologias da felicidade que nos impõem as atitudes pró-ativas e positivas. Ao menos, não sem uma tinta de humor negro.