Uma leitura contemporânea dos mitos

Pedro de Santi
 
Serviço: Roda de conversa organizada pelo Prof. Pedro Jaime, com os Professores Fred Lucio (Antropologia), João Matta (Comunicação) e Pedro de Santi (Psicanálise).
Quarta-feira, dia 11/04, às 14:00 hs, na sala B 202.
 
 
Na próxima quarta-feira teremos uma nova oportunidade de troca entre professores, num trabalho multidisciplinar de interlocução. Por iniciativa do Prof. Pedro Jaime, trataremos de um tema fundamental com interface em diversas áreas: o mito.
O termo tem uma dimensão de linguagem no senso comum, na denominação de algumas pessoas como mitos, no sentido de detentores de um valor social que as faz transcender ao seu valor de “pessoa  física”. Elas representam e encarnam ideais coletivos e são capazes de catalisar grandes montantes de emoção, num caráter carismático. Assim é com o exemplo imediato- e inevitável, neste momento de nossa história- do ex-presidente Lula. Não há figura mais aglutinadora de sentidos e afetos em nosso país nas últimas quatro décadas. A única referência de uma personagem com esta dimensão é o também ex-presidente Getúlio Vargas; mas até pela distância temporal, não conseguimos dimensionar ou medir um ante o outro. Lula é muito consciente desta posição que ocupa e a evocou no discurso que fez no último sábado, na iminência de ser preso.
Da perspectiva psicanalítica, que representarei na conversa, pretendo evocar outros dois sentidos do conceito de mito, que não deixam de ter relações com o acepção referida acima.
Em primeiro lugar, para o senso comum, o termo ‘mito’ se opõe à ‘verdade’. Ele seria uma narrativa difundida, mas sem fundamento, fantasiosa. Uma das primeiras reflexões de Freud a partir de sua experiência clínica, é que as pessoas narram suas histórias e, mais especificamente, as histórias de seus sofrimentos atuais. Mas o próprio estudo da psicologia concebe que nossa memória não funciona objetivamente, ela não é um arquivo estático e confiável de experiências.
A memória é composta de representações que que são constantemente reacomodadas, ao longo do tempo. Quando nos lembramos de algo, a lembrança não é buscada em algum lugar, mas produzida no ato de lembrar. E esta produção é feita numa tensão entre o contexto presente de evocação e os traços de memória. Assim, de forma rápida, as narrativas que temos de nossa história perdem sua condição de correspondência com as experiências vividas, mas guardam sua plena riqueza significativa. Elas não são verdadeiras nem falsas, num modelo de dualidade simplória, elas constituem nossa realidade psíquica, mitos pessoais plenos de sentido. Em termos clássicos, Freud sustenta que estas narrativas são construções ou reconstruções que têm eficácia psíquica, mas sempre sobre uma base, um lastro naquilo que efetivamente foi vivido.
Num exemplo simples, Freud se pergunta porque, entre tantas tragédias produzidas no teatro clássico grego, pouquíssimas sobreviveram. Em especial, sobreviveu a peça Édipo Rei, de Sófocles. A resposta residiria justamente no fato de que aquela representação veicularia significações ainda válidas ao longo do tempo. Este é o seu lastro; o mesmo que pode haver entre “news” e “fake news”.
 
Outra dimensão do conceito de mito na psicanálise foi mais desenvolvido pela linha derivada de Jacques Lacan. Neste contexto, mitos remetem à percepção de que as pessoas repetem, sem o perceber, relações, sucessos e fracassos ao longo de suas vidas. Haveria neste sentido, uma estrutura que subjaz às nossas ações, que é invisível em cada vivência, mas que se evidencia ao longo de nossas repetições. Aqui, lembramos que Lacan é também um francês como o antropólogo Levi-Strauss e com ele compartilha do modelo estruturalista de pensamento.
De nossa constituição infantil, traríamos padrões que inconscientemente repetimos, ante a contingência das relações com as quais nos defrontamos.
Diz uma velha máxima que “a história se repete sob a forma de farsa”. Enunciado que reúne as três acepções de mito que evocamos neste texto breve.

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