Mario Rene
Uma garrafa de Coca-Cola é arremessada de um pequeno avião, que sobrevoa o deserto do Kalahari, entre Botswana, Namíbia e África do Sul. Esta pequena garrafa de vidro é então recolhida por um bosquímano, habitante daquelas paragens, que jamais houvera tido contato com a assim chamada civilização. Como o objeto “caiu do céu”, passou a significar um presente dos deuses.
A Coca-Cola “sagrada”, alvo de veneração, é uma cena extraída de um filme de grande sucesso em 1980: “Os Deuses devem estar loucos”.
Bem… a questão é: produtos ou marcas podem ser ‘venerados’ como sagrados?
Então, vejamos: Osklem, Hollister, Abercrombie & Fitch, Quiksilver, John Joh, Tommy Hilfiger, Oakley, Puma, Mizuno, Nike Shox.
São todas elas marcas alvo de admiração e desejo.
E de consumo das classes mais abastadas.
Porém, pelo visto, não só destas. Artigos e mais artigos retratam os tais dos “rolês” da periferia e, a reboque, o fascínio por tais marcas.
Dos Matheus, Luanas, Daniéis, Nathalias, Malus e Jeffersons retratados pelas reportagens que, certamente, não faziam parte do assim chamado público-alvo dos seus respectivos fabricantes.
“Para começar, famosinhos e fãs de famosinhos – os participantes originais dos rolezinhos – são, para usar o termo tão em voga, a elite da periferia. O único problema que têm em relação ao consumo é não praticarem tanto quanto gostariam. Conectados e obcecados por marcas e acessórios de grife, têm o hábito de gastar com eles boa parte do salário (o próprio ou dos pais. (Veja, edição2357, p.41)
O que acontece, então?
O “branding” – nome bacana para estratégias para engrandecimento da marca, ruma para a construção de uma imagem simbólica que extrapola as características tangíveis e benefícios do bem que nomeia, minimizando a distinção sob a ótica do desempenho: é a imagem de marca. Um dos principais meios de ser reconhecido pelo outro é desejar, e daí possuir, o objeto que também é almejado por esse outro, o que René Girard denominou “desejo mimético de apropriação”. “Eu quero é ter o que os outros acham legal”. Nesse mecanismo de desejo, o bem em si é secundário: o fundamental é que seja desejado porque muitos outros o desejam. E assim a propaganda é fundamental na construção simbólica das marcas, que reforçam ou compõem a identidade e o amor-próprio de muitos consumidores, que nelas buscam profundas âncoras emocionais.
Mas não só a propaganda. Hoje, o funk da ostentação glorifica as grifes, porque não? Leiam:
“Tenis Nike Shoks/ Bermuda da Oakley/camisa da Oakley/olha a situação” (de “Tá patrão”), ou “De transporte nois tá bem/de Hornet ou 1100/Kawasaki tem Bandit/RR tem também” (de “Plaque de 100”). Fonte Revista Época, Edição 816.p. 68.
É o que denomino “efeito tenaz”. A propaganda é uma pinça, o funk a outra.
O velho Marx pode rolar na tumba, mas está claro que a marca pode fetichizar a mercadoria, e vai preencher ou reforçar no sujeito um espaço de valores frágeis ou ausentes. O que significa fazer de algo um fetiche? A crença no poder sobrenatural ou mágico de alguns objetos materiais, que em si eles não possuem, enquanto o indivíduo se ilude ao acreditar que esse poder emanado é intrínseco a ele. Como um amuleto, consiste em um objeto carregado de uma propriedade sobrenatural, uma espécie de força mágica, transcendente.
Uma extensa pesquisa em Neurociências do consultor de marcas Martin Lindstrom originou o livro “Buy-o-logy”, traduzido como “A lógica do consumo”. Ele demonstrou experimentalmente, via imagens cerebrais por IRMf (Imagem por Ressonância Magnética funcional), que a reação cerebral de pessoas espiritualizadas perante ícones religiosos é a mesma de consumidores diante marcas de prestígio. Marcas-ícone, como Apple, Guinness, Ferrari e Harley Davidson provocavam nos cérebros dos sujeitos ‘devotos às marcas’ precisamente os mesmos padrões de resposta de devotos expostos a imagens religiosas como crucifixos, rosários, Madre Tereza ou a Virgem Maria. “Deus mercado”, shopping centers comparados a “templos ou catedrais do consumo”, “religião das marcas”, “devotos ou apóstolos das marcas”? Este experimento ajuda a comprovar que as marcas podem possível preencher um espaço central na constituição da identidade dos muitos (nomes).
Porém, o culto às marcas não inviabiliza a crença em uma religião tradicional, em outra(s) divindade(s), e até mesmo num Ser Superior. Basta permanecer indiferente a eles no dia-a-dia: um sistema bem próximo do totemismo e da idolatria. O que se observa é que a vida do dia-a-dia pode ser predominantemente regida pelas marcas, sendo reservada à missa de domingo a regência de questões de ordem superior.
E aí pergunto: a se configurar tal cenário, não seria este algo muito semelhante a uma nova forma de politeísmo? Nas alturas, em um céu abstrato, um Deus Supremo, e aqui embaixo, no mundo real, outros deuses aos quais se presta reverência: Oakley, Nike, Mizuno, Hollister.
Ou não é assim?