Transgressão humanitária

Cesar Veronese,  Professor do CPV Vestibulares

Guimarães Rosa foi um homem superlativo. Médico, diretor do Banco de Minas Gerais, diplomata e, sobretudo, um dos maiores escritores da língua portuguesa. Sua escrita, ao lado das de Joyce, Mallarmé e Proust, está entre as mais inventivas da história da literatura. Originalidade resultante de interesses variadíssimos, paixão pela vida e disciplina para o estudo. Passou a vida fazendo listas intermináveis de nomes, plantas, bichos, crendices, lugares e muitas outras coisas. Estudou religiões e filosofias orientais, matemática e mitologia, botânica e línguas. Conhecia cerca de 25 idiomas, transitando entre línguas latinas, germânicas, eslavas e orientais.

Tinha um interesse especial pela língua e cultura alemãs, e isso provavelmente pesou na aceitação do posto de vice-cônsul em Hamburgo, em 1938. No consulado ele conheceu Aracy de Carvalho, que trabalhava na seção de passaportes, e viria a se tornar sua esposa. Nesse mesmo ano, passou a vigorar no Brasil a Circular Secreta, que proibia a entrada de judeus. Aracy, com o consentimento de Rosa, ao preparar os documentos que seriam levados para o cônsul geral assinar o visto, não colocava o obrigatório “j” que identificava os judeus. Ela misturava os passaportes e o cônsul geral, sem saber, concedia o visto para judeus viajarem para o Brasil como turistas. Assim, o casal salvou cerca de 500 vidas. Aracy ficou conhecida como o Anjo de Hamburgo e nos Museu do Holocausto de Jerusalém e Washington existem homenagens a ela.

Essa atitude arriscada e profundamente humanitária é o tema do documentário OUTRO SERTÃO, de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, exibido recentemente no 18.o Festival de Cinema Judaico de São Paulo. A exibição do filme quase coincidiu com a data da morte de outro grande diplomata brasileiro, o carioca Sérgio Vieira de Mello, morto em 19.08.03, num atentado ao quartel geral da ONU em Bagdá, quando chefiava a missão de paz da entidade, no Iraque invadido pelos Estados Unidos e as forças de coalizão.

Vieira de Mello foi um dos maiores homens públicos que o Brasil já teve e o único brasileiro a ocupar o cargo de chefe de Estado de outro país, tendo se tornado administrador de transição do Timor Leste entre 1999 e 2002. No excepcional livro O HOMEM QUE QUERIA SALVAR O MUNDO, a jornalista e atual embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Samantha Power reconstrói posto a posto a carreira de Vieira de Mello. Entre tantas ações mais do que exemplares do diplomata, ela cita sua atuação em Sarajevo, durante a guerra da Bósnia, em 1993. A cidade estava cercada pelos sérvios. Vieira de Mello tomou colocava-se ao volante do seu carro, que, juntamente com outro veículo da ONU, formavam o “comboio”, destinado a retirar da cidade cidadãos que não se enquadravam nas regras da ONU, mas que precisavam sair (doentes, pessoas separadas de suas famílias ou simplesmente indivíduos que eram mais úteis “lá fora do que aqui dentro”). A chapa branca da ONU lhes permitia franquear os postos de controle, um sob o controle sérvio, outro nas mãos dos bósnios.

O diplomata também ajudou a contrabandear gasolina para os geradores de uma organização de resistência chamada Grupo de Escritores de Sarajevo, composta por intelectuais e estudantes, e que realizavam filmes e obras gráficas e os enviavam para capitais do Ocidente a fim de mobilizar uma operação de resgate para os bósnios.

Rosa, Aracy e Vieira de Mello transgrediram conscientemente as normas. Em nome de uma outra ética: salvar vidas. Ações pequenas em termos numéricos no cômputo das estatísticas de cada conflito. Mas de incalculável valor humano se considerarmos que uma vida vale mais do que qualquer regra e qualquer acordo entre governos.

Para ler outros textos do Prof. Veronese, acesse blog CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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