(Iniciamos hoje diversas participações de professores da ESPM sobre o lançamento do livro “Eu e o outro na cidade” de Pedro de Santi)
Clarissa Sanfelice Rahmeier
Há várias formas de falar sobre o Eu e o Outro na cidade, e a coletânea dos trabalhos aqui apresentados ilustra bem isso. As teorias a respeito desse tema são relevantes, necessárias, fundamentais… elas nos tiram da mesmice que acomoda, que estagna, que julga. A partir de recortes teóricos e de minha própria vivência, proponho aqui uma reflexão sobre a nossa experiência sob o constante olhar do Outro – olhar, aqui, é sinônimo de escrutínio, de julgamento.
Todos pensamos em como seríamos olhados hoje. Como professores e alunos, elaboramos nossas falas, ilustrações, vídeos, textos, selecionamos e cortamos cenas pensando no olhar do Outro. Somos constituídos pelo olhar do Outro, desde sempre, ao longo de toda nossa vida, dando maior ou menor ênfase a esse olhar dependendo da fase em que nos encontramos. Acontece que hoje em dia, na cidade que não pára, que valoriza e premia a rapidez, o olhar do Outro se sobrepõe à essência do Eu com maior facilidade. O olhar do Outro desconstrói o Eu, e o reconstrói também. O olhar redesconstrói, expressão que dá título a esta reflexão – expressão um tanto bobinha, é verdade, mas acho que válida na medida em que faz alusão a esse processo de constante mudança do Eu frente ao olhar do Outro.
O olhar do Outro salta à minha frente e me analisa; conclui o que é processo; pontua o que são reticências; rotula o que não está pronto. E como esse olhar só enxerga o que vê, o corpo visível se torna a referência para o julgamento. O corpo do Eu, aos olhos do Outro, é o Eu em si. Na pressa da cidade que exige uma opinião rápida sobre tudo, treinamos nosso olho para dar um veredito sobre o Outro já ao primeiro contato. O problema é que essa definição alheia, dada pelo Outro como certa, entra em choque com a definição que o Eu dá a si mesmo. A auto-identificação e o olhar do Outro nem sempre dialogam.
Percebo em trabalhos de alunos que esse é um tema recorrente e relevante para eles. “Aparência X essência no mercado de trabalho”, “aparência X essência nas redes sociais”, “aparência X essência nas festas da ESPM”, “nas academias de ginástica”, “nos blogs” e por aí vai… E o julgamento quase sempre pende para o lado negativo. Vestir o corpo para parecer séria e recatada não vale: tem que vestir o que o Eu pede. Se “montar” para ir uma festa não vale: é fuga, tem que vestir a subjetividade. Parece traição ou hipocrisia quando o corpo aparente, por sua forma ou adereços, não condiz com a “verdade”.
Por outro lado, todos querem ser lidos corretamente pelo olhar do Outro, e o corpo “vai na frente” quando o Eu precisa se apresentar. Como proposto por Costa em O Vestígio e a Aura (2005), a personalidade somática, ou cultura somática, tem na imagem social do corpo o suporte, por excelência, do caráter ou da identidade. Mas uma coisa é quando a aparência é elaborada para transmitir uma essência – caso das redes sociais ou vestimentas de trabalho ou produção para baladas. Outra coisa é quando a essência é aniquilada pela aparência de forma não voluntária.
Tenho certeza de que todos nós somos julgados; e que muitas vezes somos mal lidos, erroneamente entendidos pelo olhar do Outro. Acontece toda hora quando eu olho o Outro. Acontece toda hora quando sou olhada. “Vou de unha pintada para parecer caprichosa, mas não dessa cor para não parecer fútil” – pequenas decisões que tomo me constroem perante o Outro. E quando uma barriga imensa se torna o olhar do Outro? Quando, para o Outro, não sou Clarissa, e sim “a grávida”?
Nunca vivi uma vida tão focada no corpo como quando estive grávida. Nunca me senti tão invadida pelo olhar do Outro quanto durante minha última gestação, em que estava em um contato direto e diário com centenas de pessoas diferentes. Foi uma experiência interessante, do ponto de vista antropológico (cansativa, do meu ponto de vista), que me colocou em constante choque com a definição do Outro dada sobre mim. Ao mesmo tempo, era como se eu, como visível, tivesse sobre o vidente um efeito de intimidação.
É claro que é legal, é diferente, e cada mãe tem um relato seu sobre isso. Mas não quero falar na experiência da gravidez em si, ou das transformações vivenciadas pelo corpo nesse processo, mas sim focar no constante choque, violento para mim, entre o que eu aparentava ser e o que eu sentia que era. Entre a definição dada pelo Outro e a auto-definição que construí ao longo de trinta e tantos anos havia um abismo. E eu achava muito injusto quando ouvia comentários que, na minha visão, me desconstruíam. Como quando uma aluna, sem me ver, disse a uma colega: “Tó, entrega prá grávida”. Ou quando fui agraciada com o comentário “ahhh, agora sim você está com cara de grávida: está enfeiando”… Ou “nossa, por que sua barriga está assim?” (sim, tinha vontade de andar com um livro de reprodução humana na debaixo do braço tantas foram as vezes que ouvi isso). Os assuntos eram somente sobre como eu estava, como me sentia, como seria chamado o bebê, se eu havia planejado (!!!)… Muitas dessas perguntas eu também faço, lógico. Todos fazemos. Mas da minha experiência o pensamento que vinha era: “rasga o diploma porque por 9 meses ele não fará diferença alguma. Esquece tua história, foca na barriga!” E na cara, lógico.
No lugar em que vivemos hoje, na cidade, mais ainda na metrópole, a presença física inegável e objetiva do corpo por vezes diminui a importância emocional do Outro humano. A ironia disso é que não conseguimos simplesmente soltar a mão do Outro e caminhar sozinhos: continuamos a precisar do reconhecimento do Outro para estarmos seguros de nossos ideais de Eu. É um exercício constante de negociação.
Entre achar uma roupa que me servisse (que servisse já estava bom, porque eu já tinha abandonado a questão do gosto no terceiro mês), tapar o que dava e tentar parecer inteligente escrevendo artigos eu passava o dia bastante ocupada. E com sono, lógico. Queria publicar, dar aulas muito dinâmicas, subir as escadas do prédio C, pegar o elevador lotado, tudo para que a identidade grávida não sobrepusesse as demais identidades que ao longo dos anos construí, boas ou ruins, mas com as quais me identificava há mais tempo.
É claro que aqui há uma visão pessoal, minha, particular, sobre essa experiência. Não quis fazer terapia coletiva, mas apontar para a influência do olhar do Outro na identidade do Eu. Não me referi à formação da subjetividade na primeira infância, mas à constante desconstrução e reconstrução do Eu pelo olhar do Outro. Reconheço que minha fala não deixa de ser uma contribuição autobiográfica. Mas toda reflexão é assim, em maior ou menor grau. As teorias que aparecem nos livros são também, por vezes, autobiográficas. E mais do que um depoimento, quis trazer aqui uma reflexão que busca desmistificar a ideia de que o Eu e o Outro são feitos nos livros. Os trabalhos aqui apresentados apontam para essa quotidianeidade mundana da relação Eu/Outro. A minha contribuição também. Como bem apontado na fala de Pedro de Santi, “tudo está em curso, nada está parado”. Com a história, no nível macro, e com a gente mesmo, no nível micro. E não é o micro que faz o macro?
Findada a gestação, quando meu filho tinha uns 4 ou 5 meses, meu celular tocou. Número bloqueado. Meu filho chorava enlouquecidamente em meu colo e eu nem conseguia escutar o que se falava do outro lado da linha, só entendi que era da ESPM. Minha insistência insana em seguir a conversa e o choro de meu filho foram vencidos pelo bom senso do meu interlocutor: Pedro desliga, constrangido. E eu nem tinha entendido que era o Pedro. Eu só queria mostrar que ainda era Eu mesma…