Quatrocentos anos depois da morte de Shakespeare, ele morreu?

Pedro de Santi

Neste aniversário redondo da morte de William Shakespeare (1554-1616), cabe perguntar  se realmente ele e sua obra morreram ou se, pelo contrário, seguem atuais.

Para qualquer estudioso da história da literatura ou das mentalidades, Shakespeare é um autor central. Talvez seja impossível dizer algo novo a seu respeito. Ficamos entre o autor clássico em torno do qual tantos clichês já foram consolidados (o bardo inglês…, a dúvida sobre a real autoria de suas peças, etc.) e um autor pouco lido hoje, porque hoje pouco se lê.

Como um exemplo entre tantos do valor atribuído a ele, o crítico literário norte-americano Harold Bloom não só o situa como um autores centrais do ocidente, num grupo muito restrito (O cânone ocidental. Ponto de Leitura, 2010), como o considera literalmente o inventor do Homem moderno (The invention of the human. Riverhead Books, 1999). Cada pessoa no ocidente foi, direta ou indiretamente, alfabetizada em sua interioridade pela cartilha emocional criada por ele. O proto-amor romântico de Romeu e Julieta, a angústia existencial de Hamlet, os ciúmes de Otelo, a ingenuidade quase louca de Ofélia e Desdêmona, o ressentimento de Ricardo III, o desencantamento de Lear, a guerra dos sexos em A megera domada, o amor volúvel em Sonho de uma noite de verão e assim ao infinito. Tudo humano, demasiado humano; e tudo remetendo ao título de uma de suas deliciosas comédias: Muito barulho por nada (Much ado about nothing).

Recorrentemente, suas peças geram novas versões no teatro, ópera ou cinema. No ano passado, foi filmada uma excelente versão de Macbeth (dirigido por Justin Kurzel, 2015), com as estrelas Michael Fassbender e Marion Cotillard.

Se um leitor mais jovem eventualmente não teve contato direto com alguma de suas obras, certamente o teve indireto: suas tramas e afetos são reproduzidas de diversas formas. O ambiente shakespeariano está muito bem representado na série de grande sucesso House of cards (NETFLIX, atualmente, na quarta temporada).

Se isto apoia a ideia de uma atualidade de Shakespeare, também há elementos para depor a favor de sua caducidade, assim como a de todo o seu universo cultural. O ambiente de Shakespeare é a interioridade psicológica, mesmo que entre guerras e conflitos políticos. E a interioridade do Homem moderno é justamente um dos elementos mais visíveis a se dissolver no mundo contemporâneo. Nossas experiências e afetos têm sido cada vez mais exteriorizadas em mídias sociais. Nossa demanda humana de relação já pôde se alimentar de um monólogo entre partes de nós mas, hoje, quase já não temos com quem monologar.

A cisão do sujeito moderno dividido entre um eu que age e um eu que que se auto-observa (sob a forma de vergonha ou culpa) torna-se a experiência de um desespero em saber quantas pessoas curtiram ou compartilharam o que foi postado. O supereu foi deslocado para o monitoramento virtual.

Em Shakespeare encontramos, ainda a graça do “Wit“, termo de difícil tradução, mas que remete à espirituosidade ou à ironia, presentes em personagens como o bonachão Falstaff, Hamlet, o bobo da corte de Lear ou o invejoso e maquiavélico Iago. Para quem conhece psicanálise o termo alemão correspondente, Witz, compõe o título da obra de Freud: O chiste e sua relação com o inconsciente (1905). O “Wit” envolve humor e distanciamento; a ironia de quem tem a consciência melancólica de que as palavras são apenas representações, sem relações intrínsecas com as coisas. No Romantismo, a ironia ganhou a conotação de consciência de um exílio em que toda experiência humana se encontra: longe das coisas, da natureza, da origem, de Deus.

Se este exílio é melancólico, ele ao menos nos mantém sob dúvida e suspeita sobre nós mesmos. Com esta auto-crítica, podemos nos guardar da tentação de impormos nossas posições aos outros e nos abrimos ao jogo do convívio democrático.

Esta dimensão da experiência do Homem shakespeareano certamente está desaparecendo. Hoje muitas pessoas ou grupos investidos de certezas falam em nome de Deus ou policiam o uso das palavras tomadas em sua literalidade, em detrimento de seu contexto de uso: este é o politicamente correto; o intolerante assentado numa doutrina sobre direitos e disfarçado de empatia pelos potencialmente ofendidos.

Da mesma maneira, a própria psicologia e sua investigação do mundo subjetivo vem sendo substituída por uma investigação focada no funcionamento cerebral ou em aspectos mais instrumentais, como a “tomada de decisão”.

A morte verdadeira de Shakespeare: discursos concretos, falta de humor, pessoas planas, certezas fanáticas com ares messiânicos. Gente que se leva por demais a sério, enfim.

 

Mas ainda resta, ao menos, a atualidade de um dos recursos dramáticos recorrentes de Shakespeare: a peça dentro da peça. Em muitas delas, é representada uma encenação. O efeito retórico é o da criação de um efeito reflexivo no qual acabamos por reconhecer a nossa própria vida como uma representação.

No caso de nosso momento político no Brasil, em 2016: um festival de farsas, para ser mais específico.

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