Onipotência e impotência na reprodução assistida

Pedro de Santi

Uma das notícias mais chamativas da última semana foi a prisão do médico Roger Abdelmassih, depois de anos foragido. Condenado a quase 300 anos pelo abuso de muitas mulheres, ele conseguira escapar e se manter escondido graças ao altíssimo poder aquisitivo que acumulou.

Dentre tantos aspectos éticos e jurídicos envolvidos, neste breve texto quero apenas contrapor a dimensão da onipotência da qual ele se investia- ele se auto-intitulava “doutor vida” e também foi acusado de manipulação genética e comércio ilegal de óvulos- à impotência em que se viam as mulheres que o procuravam movidas pela esperança de conseguirem engravidar e que, em alguns casos, mesmo depois de molestadas voltavam à sua clínica, reconhecida como uma das melhores de São Paulo. É nesta oposição que se evidencia a covardia e o abuso exercidos.

Independente do que haja de particular nesta situação e de patológico nesta personagem, há algo na estrutura da relação que se estabelece nestes casos que cria um ambiente favorável ao abuso.

Certas especialidades médicas lidam diretamente com a vida e a morte. Erros médicos tendem a ser mais tangíveis e dramáticos do que o de outras profissões. O grau de pressão é muito grande e é preciso desenvolver distanciamento objetivo ante o sofrimento do paciente. Viver neste limite e ter a possibilidade de salvar e sustentar vidas não é simples.

O médico que trabalha com técnicas de reprodução assistida, igualmente, se vê na situação de interferir diretamente no processo de gerar vida. Há pacientes que explicitamente dizem: “tive meu filho com o doutor tal”. Como a tecnologia tem avançado rapidamente na área, surgem questões de ética profissional novas, ainda não regulamentadas por órgãos médicos ou jurídicos: em outros termos, na extremidade do avanço tecnológico ainda não há lei. Longe de legitimar as ações do acuado em questão, apenas observo que o trabalho no limiar da vida e da morte pode de fato ser embriagante e despertar o sentimento mágico de onipotência.

Os pacientes procuram as clínicas de reprodução assistida em situação de grande sofrimento psíquico, frustração e culpa. A fragilidade e medo do fracasso no projeto de ter um filho cria deforma complementar o depósito de esperança e idealização sobre aquele que pode vir a realizar aquele projeto. Isto também pode ser chamado de ‘sugestão’ (ou transferência, para a psicanálise e eficácia simbólica, para a antropologia) e é um fator essencial na aderência ao tratamento indicado. Isto é intrínseco à relação médico/paciente, mas ganha uma potência maior neste contexto.

É muito impressionante o que costuma acontecer com mulheres (ou casais) que se vêem ante a dificuldade de terem um filho. Por vezes, até este momento, a mulher pensava que um dia gostaria de ter um filho; isto era algo desejado, entre outros projetos de vida. Quando se evidencia uma dificuldade específica e desenha a impossibilidade de ter filhos, há uma reviravolta. A vida pára e a mulher se pergunta pelo motivo da impossibilidade; ela se ressente de que todas as outras mulheres conseguirem, menos ela; se pergunta se de alguma forma é culpa dela ou do companheiro.

Neste momento, os demais projetos de vida são suspensos e tudo passa a girar em torno de desfazer a marca da infertilidade estigmatizante.

É neste ponto que as clínicas de reprodução assistida são procuradas. Pessoas fragilizadas, dispostas a fazer grandes sacrifícios financeiros, eventualmente com o casamento sob risco. Naturalmente, há inúmeros profissionais e clínicas sérias, que se engajam nesta batalha. A cada tentativa de engravidar que falha, todos reagem como se se tratasse de uma morte; cada menstruação é vivida como um aborto. Quando se trata de um casal, espera-se que ambos estejam fechados em compromisso; se um quer desistir antes, pode por o casamento a perder.

Há casos de sucesso rápido, outros de sucesso muito custoso e muitos de fracasso. Os filhos nascidos deste processo muitas vezes trazem em seus nomes sua história: Vitória é um nome comum neste contexto.

Coloco-se agora neste contexto as acusações de abuso de Abdelmassih. Quando se defende que ele não teria força física para submeter as mulheres, está se ignorando o pior aspecto do abuso: a fragilidade emocional daquelas mulheres e a dramaticidade a esperança profunda depositada por cada paciente nele. Por isto, dentre todos os relatos chocantes, os que mais me tocaram foram aqueles de mulheres que, tendo sofrido um abuso, voltavam à mesma clínica, colocando seu desespero em ter um filho à frente de sua indignação. Isto dá uma escala das emoções envolvidas.

Uma vez que surgiu a denúncia, muitas mulheres se manifestaram, sentindo-se mais seguras para se afirmar vítimas, o que não é nada fácil. Elas carregam agora o estigma de mulheres abusadas. Podemos imaginar que inúmeras outras mulheres tenham permanecido caladas.

Algumas das denunciantes participaram do esforço para localizá-lo; algumas ainda fizeram questão de encará-lo pessoalmente depois da prisão, alegando querer mostrar que não tem mais medo. Outras, enfim, o acusam de ter sido o responsável pelo fim de seus casamentos.  A imagem envelhecida daquele homem não deve nos distrair do potencial de sugestão de que ainda é capaz.

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