Objetos de consumo, objetos de desejo

Pedro de Santi

Quando se discute sobre o lugar do consumo em nossas vidas, alguns argumentos insatisfatórios são reiteradamente repetidos, entre outros: uma definição muito pobre da distinção entre necessidade e desejo; e a concepção segundo a qual todo o consumo implica numa dimensão alienante. Nos dois aspectos, encontramos uma dimensão moralizante que vê no consumo algo intrinsecamente negativo.

Só seria legítimo um consumo que se circunscrevesse ao campo das necessidades. Com o distanciamento progressivo delas, viria um consumo de supérfluos, cujo extremo seria representado pelo consumo de luxo. Mas o que se entende aqui como necessidade? De forma generalizada e acrítica identifica-se o termo ‘necessidade’ ao campo biológico: alimentação, abrigo, fuga do perigo. E qual é a direção que leva ao impróprio? Aquilo que diz respeito aos desejos e fantasias das pessoas. Para um psicanalista, esta distinção não faz sentido. O que pode parecer o apoio na base sólida da biologia para a definição de necessidade e excesso ou desejo, oculta um discurso moralizante, que recrimina o prazer.

No outro aspecto que destaquei como insatisfatório, o discurso toma ares apocalípticos. O consumismo contemporâneo anuncia uma decadência dos valores humanos e civilizatórios. O consumo existiria de fato por interesses corporativos e os consumidores consistiram simples massa de manobra a serviço daqueles interesses. Neste caso, podemos reconhecer elementos importantes na construção de uma sociedade de consumo. Mas o tom persecutório e unilateral levanta também suspeitas. As pessoas seriam assim tão facilmente manipuláveis? O consumo teria podido adquirir o papel que tem em nossa cultura sem encontrar nenhum lastro em necessidades legítimas das pessoas?

Há uma modalidade específica do consumo que o leva para um caminho, agora sim, alienante: a compulsividade. Mas é imprescindível estabelecer uma distinção entre estes caminhos.

Ninguém questiona o fato de que todo ser vivo consuma algumas coisas como forma de sustentar sua vida. Oxigênio, alimentação, luz em alguns casos. Todo ser vivo consome. Mas entre este fato e a criação do substantivo ‘consumo’ ou a criação da categoria ‘consumidor’ há uma passagem de significação. O consumo é um termo associado fortemente ao mundo moderno.

É mais recente a ideia de que uma sociedade de consumo acabe por gerar um descontrole patológico em cada vez mais pessoas. É justamente nos Estados Unidos, o país mais associado a uma cultura do consumo, que surgiu uma preocupação sistemática com isto. Parece haver algum ponto de inflexão a partir o qual a pessoa deixa de ser capaz de discernir e regular suas ações e escolhas e passa então de fato a ser levado, compelido a consumir. Em inglês, recorre-se sempre ao termo ‘driven’.

Mas não considero que o consumo seria uma expressão de um materialismo que busca acúmulo de bens, nem uma vitória do discurso técnico e impessoal da Modernidade. Quase que pelo contrário, ele estaria profundamente entranhado no Romantismo, com sua valorização extrema da singularidade. O consumo seria hoje um lugar privilegiado para a fantasia e um modo primário de expressão e exploração de nossos gostos individuais (nossa sensibilidade, em linguagem romântica).

Esta perspectiva quebra o clichê segundo o qual nossa sociedade só se preocupa com bens materiais e se afastou da espiritualidade. O nosso consumo não está ligado exclusivamente ao uso ou acúmulo do objeto de que se trate, mas ele envolve características experienciais, de sensação e fantasia.

Há na definição de desejo da psicanálise uma peculiaridade: a ideia de que nossos desejos não têm objetos naturais. Concebe-se que o homem teria perdido uma série de engates biológicos (instintos) em favor de sua capacidade única de adaptação e transformação da natureza. Deste processo, resulta que sentimos faltas, delas surge um impulso na direção de dar conta dela mas, tendo perdido os comportamentos reflexos que poderiam ser ações específicas para dar conta da falta, encontramos objetos privilegiados para a ligação de nossos desejos no ambiente no qual nos constituímos.

Qual o interesse deste desenvolvimento para uma reflexão sobre consumo? Bem, trata-se da compreensão de que o desejo humano não tem objetos intrinsecamente certos ou legítimos. Ele implica num excesso ligado à própria condição da vida. E este excesso procurará por objetos contingentes em busca de satisfação. O nascimento da experiência do consumo tal como conhecemos no mundo moderno parece se encaixar perfeitamente com a necessidade de novos objetos que caracteriza o próprio movimento do desejo.

A outra discussão de interesse é aquela segundo a qual o consumo se apoia em falsas necessidades, criando um estímulo para o interesse por objetos supérfluos, no apelo por um prazer excessivo, antinatural e, por isso, reprovável moralmente. Ora, a base desta argumentação é o pressuposto de que existam objetos primários e legítimos para o nosso desejo.

Quando se diz que uma pessoa pode procurar o consumo como substituto de uma outra satisfação que não pode encontrar na vida pessoal, sexual ou profissional, isto informa sobre uma condição importante do desejo: sua independência com relação ao objeto específico, o que permite que haja um deslocamento para outros objetos. Com isto, a psicanálise está plenamente de acordo. Mas então há a presunção de que ele estabeleceria um movimento ilegítimo, uma vez que o desejo anterior seria mais verdadeiro.

O que queremos deduzir do desenvolvimento teórico anterior é que o desejo que se configura em torno de fantasias e comportamentos de consumo não é necessariamente secundário, substituto de outro campo mais legítimo. A subjetivação e a construção dos desejos singulares de um sujeito se realizam em suas ações, desejos e fantasias. Não há um campo representativo ou experiencial que se afigure como primário ou privilegiado. Numa sociedade de consumo, é também através de seu consumo que um sujeito se configura.

Podemos dizer que o Homem tem a necessidade primária de prazer, excesso, diferença. As experiências humanas que não propiciam este campo impõem ao Homem uma sub existência, uma sobrevivência pobre e insuportável. Estas necessidades são concomitantes às biológicas e não se seguem a elas. Não somos primeiro animais que, apenas depois de supridas suas necessidades biológicas, passam a ter anseios e experiências humanas.

Comentários estão desabilitados para essa publicação