O trauma, a piada, o morto e a sonhática

Pedro de Santi

Acompanhando a mídia, costumo medir o tempo da paralisia produzida por acontecimentos traumáticos pelo seguinte índice: em quanto tempo vira piada?

A morte de Eduardo Campos foi dramática pelo contexto eleitoral e familiar (ele tinha 5 filhos, um deles recém nascido e com síndrome de down), mas virou piada quase que instantaneamente nas mídias sociais. Outras seis pessoas morreram, casas foram destruídas e muito mais gente poderia ter morrido. Ou estamos mais cínicos, ou ele não falava tão fundo à muita gente. Ou os dois.

Uma experiência traumática é aquela que toma a pessoa despreparada, sem recursos para reagir, de forma que ela fica paralisada e é como se o tempo parasse. O retomada do tempo e a possibilidade de algum distanciamento, expresso pelo humor, indicam o início da absorção do trauma.

O 11 de setembro ou a morte do Tancredo e do Senna custaram muito (meses) para serem representadas com humor. Este último mês tem se mostrado dramático na quantidade de mortes de personalidades públicas de expressão no Brasil: Suassuna, João Ubaldo, etc. Também não vi piadas a respeito. No caso do João Ubaldo, houve um humor carinhoso, em resposta afetiva ao excelente humor do próprio.

O que fez com que tenha havido, no caso da morte de Campos, o surgimento tão instantâneo de gozações e charges, como a que mostrava a Presidente atirando no avião com uma bazuca? No mesmo dia, o sempre interessante Blog do Sakamoto já reclamava do desrespeito espalhado pela rede.

Muita gente considera que as mídias sociais tornaram mais gratuita e irresponsável a expressão de nossos afetos, sobretudo os hostis. O deboche imediato e desrespeitoso seria coisa propiciada pelo Facebook. O pensamento imediato pode ser publicado instantaneamente, sem filtros. Mas há também quem considere que haveria um ódio mais específico aos políticos, o que combinaria com o relativo desinteresse pelas eleições, já tão próximas.

As mídias sociais são sensacionais em sua capacidade de nos aproximar e circular informações, mas também são o desaguadouro de toda a forma de ódio. Por vezes nominal, por vezes no “secret”, de forma a que não seja preciso sequer responder pelo que se dejeta.

Motivos para termos ódio não faltam num ambiente em que nos sentimos constantemente agredidos, desprotegidos, manipulados por políticos ou pelo Mercado. As frustrações da vida comum também geram raiva. O ódio está aí. E tudo leva a crer que a internet pode ser um lugar de descarrego. Mas ela não é inofensiva por se manter no campo da agressão virtual; ela pode ofender e fazer estragos profundos naqueles que são seus objetos.

O ódio aos políticos profissionais parece atribuído à frustração que sentimos pelas condições sociais de nossas vidas, somadas à exaustão de seu discurso vazio. Esperaríamos de nossos representantes que eles fossem melhores que nós, mas encontramos apenas gente comum, defendo o seu. O pior é o ódio aos políticos derivar em aversão à política, uma vez que isto nos isola em nosso individualismo e mantém o poder político na mão de uma classe cada vez mais medíocre.

Juntas com as piadas, vieram as teorias e fantasias. Um vizinho das casas atingidas disse ter visto o rosto e os olhos azuis de Campos; a família divulgou que o acidente teria sido provocado pela colisão com um helicóptero; depois, veio a hipótese de choque com um drone; um bombeiro disse que o piloto foi um herói, pois teria desviado de prédios e se lançado sobre um terreno; ouvi também que seria um atentado à Marina Silva, que deveria estar no vôo. E por aí vai nossa mente: essa máquina paranoica de dar sentido ao que não tem; fazemos de tudo para não ficar os entregues ao vazio.

Da mesma forma que se multiplicaram piadas mórbidas no dia da morte de Campos, perfis dele passaram a ser divulgados, mostrando-o como homem de família,, dedicado à construção de uma carreira política coerente e fiel ao legado de Miguel Arraes, seu avô. Na manhã seguinte, eu e mais uns tantos com quem conversei nos flagramos dizendo: “puxa, até que ele era bom, talvez eu viesse a votar nele”.

Quando isto me ocorreu, caí em mim e me lembrei do arquetípico tabu em torno da morte: um morto parece ser santificado, limpo de todas as suas características difíceis e negativas no convívio. Os adversários políticos na eleição presidencial correram para expor seu apreço e lamento. O PT lembrou que ele fora ministro de Lula; Aécio afirmou que encamparia os ideais de Campos…

Meu amigo e antropólogo Fred Lúcio postou outra observação aguda: estamos tão carregados de negatividade que só conseguimos reconhecer os aspectos positivos de quem já esteja morto. O “outro” se transmita de ameaçador para saudoso.

A temporalidade segue assim: a tensão do conflito entre adversários; o tripudiar odioso do inimigo abatido; a idealização póstuma e, só então, o remorso e a identificação.

Os mortos seguem vivos em nossa memória e os vivos seguem se matando.

E a sonhática Marina? É a bola da vez. Já está bombando nas pesquisas, herdando o contingente de insatisfeitos com a política tradicional, a comoção pela morte de Campos e o conservadorismo evangélico. E mais, com o discurso carismático pronto: as forças humanas procuraram prejudicá-la, inviabilizando seu partido, mas a mão de Deus a recolocou na direção de seu destino. Sem base partidária consistente e com muita emoção. A onda pode crescer e ainda não ter quebrado no início de outubro.

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