O poder da reflexão II. A reflexão como refluxo e retorno ao fluxo.

Pedro de Santi

Serviço. Evento TEDxESPM. No dia 19/10, a partir das 14:00 hs. Minha participação será às 16:00 hs.

Na semana passada escrevi neste espaço sobre o tema a partir de uma citação de José Saramago, na qual o nosso verdadeiro nascimento é relacionado a um movimento reflexivo, no qual nasce a consciência de si:
“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo”. Manual de pintura e caligrafia (1977).
Hoje, trago a proposta de um movimento de refluxo e fluxo.
A possibilidade de refletir nos retira do fluxo dos acontecimentos que se precipitam. E eles têm se precipitado em tal quantidade e qualidade que ganham uma condição traumatizante: não temos tempo ou recursos para absorver, digerir e nos apropriarmos deles. Em certo sentido, eles quase não são vividos.
Sempre me lembro de um aluno para quem perguntei com o que ele sonhava para si em 5 ou 10 anos. Ele franziu a testa e respondeu: “como assim, 5 anos? Não consigo pensar tão longe. Tudo o que eu consigo é pensar em como chegar vivo na sexta-feira!” O excesso de demandas nos coloca em posição sempre reativa, sem capacidade de planejamento e, de fato, escolha. Não escolhemos o que fazer com o critério de importância, apenas saímos correndo para pagar as dívidas e pendências já inadiáveis.
Neste sentido, a reflexão é uma interrupção neste fluxo alienado e a busca por uma estaca onde nos ancorarmos. Ganha-se então distanciamento e perspectiva.
Numa metáfora conhecida para os psicanalistas, Freud relaciona a ruptura à condição de conhecimento da estrutura de funcionamento das coisas, invisível no fluxo da experiência:
“Quando atiramos um cristal no chão, ele se quebra, mas não arbitrariamente, ele se decompõe segundo as direções de suas fendas em pedaços cujas delimitações, apesar de invisíveis, já estavam determinadas antes pela estrutura do cristal”. Novas conferências introdutórias à psicanálise (1932).
Só com este distanciamento é possível um pensamento critico. Sob aquilo que parecia simples, evidencia-se uma estrutura, que só se torna visível na decomposição em suas partes elementares: é exatamente isto uma análise.
A filosofia como um todo poderia ser concebida como trabalho reflexivo sobre o mundo e a vida.
Mas o refluxo com relação à experiência imediata gera também um risco: aquele de que o pensamento paralise a ação. O monólogo mais conhecido do teatro traz este impasse. Quando Hamlet enuncia “ser ou não ser”, segue-se uma reflexão sobre a vida e a morte, que se conclui com a seguinte passagem:
“E assim a reflexão faz todos nós covardes
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento
E empreitadas de vigor e coragem
Refletidas demais, saem de seu caminho
Perdem o nome de ação”
Há um tempo para a reflexão, e um tempo para a ação. E há mais. O psicólogo americano Daniel Kahneman ficou muito conhecido em 2011 com seu livro “Thinking, fast and slow”. Nele, diferencia dois modos do pensamento: ao rápido, ele chama de intuição; e funciona basicamente num modelo de reconhecimento, baseado em experiências e modelos interiorizados anteriormente. O pensar rápido é quase instantâneo e, de fato, dá conta de boa parte de nossas necessidades. Mas, como se pode…intuir, ele é limitado ao contentar-se em encaixar e categorizar os acontecimentos. Como sabemos, este modo é bastante difundido por quem gosta de classificações em caixinhas: gerações, diagnósticos, perfis de consumidor, horóscopos. Pensar devagar é o processo reflexivo: ele gasta energia e tempo, mas é o pensar propriamente dito, em sua capacidade de dedicar-se ao objeto específico em questão.
É interessante, então, encontrar um balanço entre a reflexão, a intuição e a ação.

De um processo de reflexão, saímos transformados. O processo de consciência de si é interminável. Parte do eu observa outra parte que age; isto transforma a ação e requer novo olhar reflexivo, sucessivamente.
E a reflexão coloca em perspectiva as coisas do cotidiano nas quais nos perdemos e pelas quais achamos que o mundo vai acabar. Crises no trabalho, dificuldades na família, dor de dente, o resultado das próximas eleições…
Autores importantes falam sobre o perspectivismo que nos alça da mistura como o que é imediato: Nietzsche, Freud, Montaigne, entre muitos outros. Cito abaixo trecho do poema “Tabacaria” (1928) de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Depois de uma melancólica reflexão sobre a vida, o narrador vê do outro lado da rua, sob a tabuleta de seu negócio, o Esteves “sem metafísica” que acena para ele e o traz de volta, transformado ao fluxo do cotidiano:
“(…) Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também
Depois de certa altura morrerá a rua em que estava a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos,
Morrerá então o planeta girante em que tudo isto se deu (…)”
A transformação proporcionada pela reflexão sobre si pode trazer a consciência da finitude e da nossa auto-insuficiência. O ponto de perspectiva pode mudar da “próxima sexta-feira” para um ponto adiante, das dívidas a saldar ao que é mesmo importante na vida.
Encerro esta reflexão com uma passagem dos “Ensaios”, de Montaigne, justamente sobre a abertura de possibilidade de desfrute da vida de forma mais fluida e plena, uma vez que estejamos desprendidos daquilo que se impõe como urgência, sem realmente sê-lo:
“Termine vossa vida quando terminar, ela aí está inteira. A utilidade do viver não está no espaço de tempo, está no uso. Uma pessoa viveu longo tempo e no entanto pouco viveu; atentai para isso enquanto estais aqui. Terdes vivido bastante depende de vossa vontade, não do número de anos (…) E, se a companhia vos pode consolar, não vai o mundo no mesmo passo em que ides?”

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