O outro no imaginário (“Eu e o Outro na Cidade” – pt. 2)

(Continuamos com diversas participações de professores da ESPM sobre o lançamento do livro “Eu e o outro na cidade” de Pedro de Santi)

Parece haver razoável consenso hoje nas ciências humanas sobre a importância do outro em nossa própria constituição psíquica, identitária e cultural. Não tanto como conceito, mas antes como estrutura de pensamento, o outro é aquele por meio de quem nos pensamos; são os parâmetros pelos quais nos definimos, o esteio de nossa humanização, o fundamento de nossa individuação. Ou seja, todo esforço de compreensão acerca de quem sou passa pela presença incontornável desse outro – ou na síntese eloquente de Rimbaud: J’est un autre, “eu é um outro”.
No entanto, essa presença do outro não se dá sem conflitos. Isso porque o outro representa, simultaneamente às possibilidades de expansão do ser, um agente de resistências, agressões e incompreensões. Ao mesmo tempo, o outro aplaca e aprofunda nossa solidão: compartilhamos o mesmo mundo, habitamos a mesma paisagem; mas com frequência, vemos constituir-se entre nós uma barreira aparentemente impenetrável. Desse isolamento, decorrem as maiores tragédias humanas, tanto num plano privado quanto numa escala social e histórica. Os mal-entendidos, os preconceitos, os etnocentrismos, os xenofobismos, os genocídios decorrem todos desse fracasso de reconhecimento do outro ou da legitimidade de seu existir.
Cabe aqui frisar que o outro é uma categoria que só nasce a partir da definição do eu próprio ou do nós próprios. “Outro” não existe por si só; ele é sempre atribuição de uma consciência que, em certo momento, designou-se como “si”. É bastante difícil imaginar-se como outro, ainda que esse seja um exercício fundamental de compreensão e de empatia.
Há diversas abordagens possíveis para pensar na forma com que designamos e nos endereçamos a esse outro. Queria aqui sugerir um caminho – muito limitado, por sinal – ancorando-me sobre as teorias do imaginário. Assumo aqui a perspectiva lançada pelo pensador francês Gilbert Durand, que há cerca de 50 anos escreveu uma obra fundamental para esse campo de estudos, chamada As estruturas antropológicas do imaginário.
Nesse livro, Durand lança as bases do que chamou de uma arquetipologia geral das imagens, separando-as em dois grandes regimes: o diurno e o noturno. Não pretendo aqui me estender sobre essa divisão, nem sobre os fundamentos conceituais que balizam essa classificação. Porém, acho necessário contextualizar a sequência dessa fala no grande quadro do imaginário durandiano.
Para Durand, o imaginário é um conjunto relacional de imagens por meio do qual atribuímos sentido ao que nos cerca. Essa busca de sentido, condição existencial do homem, está intrinsecamente ligada à consciência da finitude da experiência humana e dos desafios enfrentados nesse trajeto. As imagens materializam uma espécie de gesto diante das faces do tempo.
No regime diurno, estabelece-se uma constelação de imagens antitéticas, ou seja, de oposição e separação. São estruturas simbólicas que Durand denominará de “heroicas”, fundadas sobre a conquista ou a eliminação. Já o regime noturno congrega as imagens eufemísticas de assimilação, mergulho, união, fusão. Trata-se se uma inversão afetiva das imagens combatidas no regime diurno.
Durand demonstra que a angústia diante das faces (ou da passagem) do tempo podem ser materializadas em três tipos de símbolos: os teriomórficos (imagens de bestas ou monstros), os nictomórficos (ligados à treva) e os catamórficos (imagens de queda). Na estrutura heroica, esses símbolos são duramente combatidos, como numa espécie de afirmação da vida sobre a morte.
Volto aqui à discussão sobre o outro, detendo-me apenas sobre um grupo específico de imagens, dentro do regime diurno, que são os teriomórficos. Chama a atenção o fato de que o outro seja frequentemente ligado à imagem de animais. É certo que valorações positivas também podem ser estabelecidas nas metáforas dos animais, como a realeza do leão. Porém, quando se diz que o rei é glorioso como o leão, trata-se mais de uma personalização do comportamento animal do que o contrário. Já quando a valoração é negativa, de ameaça ou desprezo, a metáfora animal é marcante pela sua bestialidade, pela ausência do humano.
Prof. Dr. Guilherme Mirage Umeda
(Grupo de Estudos Eu e o Outro na Cidade)

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