Pedro de Santi
Na mitologia grega, o melhor dos médicos é o centauro Quiron, o médico ferido. Ele é sempre evocado na formação de psicanalistas: só é possível lidar com o sofrimento do outro quando se tem consciência e contato com o próprio. Na última semana, acompanhei um episódio de atualização deste mito.
Cronos, como seu filho Zeus, usava o artifício de se metamorfosear para suas conquistas (o mito da origem do chaveco) e se transformou num cavalo para seduzir a ninfa Filira. Deste encontro nasceu um ser meio humano, meio cavalo. Simbolicamente, o centauro representa a dualidade dos aspectos mais animais e espirituais no homem, assim como o paradoxo de estar cravado no chão com suas quatro patas enquanto ergue seu olhar e arco para o céu.
O pai evitou seu filho ilegítimo e a mãe rejeitou o filho monstruoso (imagine-se a dor do parto). Abandonado, ele foi acolhido por Apolo (deus da luz da razão) que lhe ensinou artes, música, poesia, ética, filosofia, artes divinatórias e profecias, terapias curativas e ciência. Quiron tornou-se conhecido como um sábio. De seu nome, derivam os termos ‘quiropraxia’ e ‘quiromancia’. Um dia, porém, de forma acidental foi ferido em sua parte animal por uma flecha do herói Hércules. A ferida incurável e mortal num centauro imortal resultou numa dor extrema e perene.
A partir desta tragédia, ele se tornou definitivamente o melhor dos médicos: Quiron, que já havia se constituído na superação do abandono pelos pais, reúne agora seu conhecimento técnico à capacidade de empatia pelo paciente dada por sua própria dor. Esta soma resulta em algo superior ao conhecimento: a sabedoria. Ele não olha o paciente como simples objeto de intervenção ou caso a ser resolvido. Não se trata de uma relação em terceira pessoa, mas em primeira. Ele sabe o que é o abandono e a dor.
Um dia, Hércules penalizado com o sofrimento de Quiron e de Prometeu (outro condenado ao sofrimento eterno, por ter dado o controle do fogo ao Homem), pediu a Zeus que lhes concedesse a graça humana da mortalidade e desse fim ao seu sofrimento. Assim, pôde morrer Quiron. Outra sabedoria a ser conquistada: poder morrer e deixar morrer.
Este mito atualizou-se recentemente na experiência de docência de minha mulher, médica.
Ao chegar para dar uma aula na faculdade de medicina, ela foi recebida por uma aluna que lhe perguntou se sabia o que havia “acontecido com nossa turma”. Contaram a ela então que um dos colegas havia sido atropelado e se ferido gravemente. A turma foi decisiva no socorro do colega.
De uma só tacada, aqueles alunos se defrontaram com o sofrimento de um próximo, as condições do sistema de saúde, as questões éticas relativas a como lidar com os procedimentos dados pelos médicos responsáveis pelo caso.
Mas, sobretudo, se encontraram com uma capacidade de implicação com o cuidado do outro muito superior àquele definido como padrão na relação médico/paciente.
Minha esposa ficou extremamente tocada pela situação e, para surpresa dos alunos, igualmente se implicou nela, no que foi seguida por outros colegas médicos e professores.
O que mais tocou minha mulher foi a formulação inicial: a ideia de que aquilo aconteceu com a “nossa turma”. Foi esta capacidade de sentir para além de sua própria individualidade e a implicação com o sofrimento do outro que nos faz acreditar que esta turma sairá da faculdade amadurecida pela própria ferida. Através do acidente e de como a ele reagiram, aqueles estudantes passaram por um ritual de passagem e provavelmente se tornarão melhores médicos.
Ah sim, o paciente passa bem.