O luto por vir

Pedro de Santi

Neste momento tão dramático da vida nacional, onde estamos estarrecidos e nos sentindo sem condições de dar conta do que está acontecendo ou de prever o que vem pela frente. A frase da semana deve ter sido a difundida: “Quem não está confuso, está mal informado”.

Ante movimentos e transformações tão rápidas, quando a imagem que temos de objetos valiosos de nosso afeto vai sendo destruída, muitos respondem quase que alucinatoriamente, apegando-se a representações já caducas. Apegados a suas identidades e certezas ora frágeis, comportam-se com absoluta intolerância ante quem aponte o fim daquilo que lhe é caro. E acham que sabem o que está acontecendo.

Neste texto, vou desenvolver o que pode se seguir à negação da realidade da perda: o processo transformador do luto. Mais do que uma possibilidade, é um voto, uma vez que a impossibilidade de se elaborar o luto nos entrega à repetição neurótica.

Nosso trabalho, nossa casa e todas as pessoas ao nosso redor são, de certa forma, extensões de nós. Aquilo que chamamos de ‘eu’ tem como primeiro limite nosso corpo, mas, na realidade, ele se estende por tudo aquilo que é importante para nós, tudo aquilo que compõe nosso mundo de representação e investimento de afeto. Quando algo em nosso ambiente é alterado, sentimo-nos ofendidos, invadidos. Quando alguém significativo para nós passa por mudanças, igualmente costumamos reclamar: a estabilidade de nossa identidade é ancorada em esquemas de espelhamento e reconhecimento.

Assim, quando perdemos um objeto de amor, isto é vivido como ferida narcísica, como se tivéssemos perdido um pedaço de nós ou as balizas nas quais nos referenciamos.

Não é raro que simplesmente neguemos a perda e tentemos nos apegar à crença de que ela não aconteceu. É o que acontece tantas vezes com uma mãe que perde um filho e, sem poder dar conta de sua dor, nega o acontecimento por muito tempo, servindo-lhe comida, arrumando-lhe o quarto e repudiando qualquer um que venha tentar lhe trazer à realidade.

Quando a realidade da perda ou ofensa se impõe, é disparado um processo chamado luto. O termo parece pesado e só se aplicar a situações de morte, mas não é assim.

Em que consiste o luto? Em primeiro lugar, a reação à perda faz com que as pessoas se recolham, percam provisoriamente o interesse e o gosto pelas coisas e pela vida em geral. Sobretudo, o investimento no objeto perdido é recolhido, de modo que o luto é dimensionado pelo valor daquilo que se perdeu.

Descritivamente, uma pessoa em luto está deprimida. E o que diferencia o luto da depressão como psicopatologia é justamente o fato de que ele, com o tempo, passa. A depressão, por sua vez, é um quadro crônico e nele não se identifica um objeto perdido específico.

No luto, há um período- em geral, longo- que parece mórbido a quem veja de fora. A pessoa passa a evocar repetidamente as lembranças relativas ao que foi perdido: revê fotos, lugares e conta inúmeras vezes as mesmas histórias.

A ‘luta’ a que refere o termo ‘luto,’ consiste no fato de fazemos ao mesmo tempo duas coisas: tentamos manter o objeto de apego vivo, enquanto nos despedimos vagarosa e dolorosamente dele.

É como se erguêssemos um altar interno e nos tornássemos os guardiões de sua existência. A perda de um objeto significativo de amor opera um trauma e, como acontece nestes casos, o tempo parece parar. Sofremos o estranhamento de observar o mundo a nossa volta em movimento normal, enquanto para nós o mundo entrou em colapso e parou.

Mas esta tentativa de manter o objeto perdido vivo é contrabalançado com a falta dele que se impõe. Aquilo que parece desde fora mórbido, contém também um lento trabalho de desligamento. É como se a cada lembrança “gastássemos” um pouco a memória e nos emocionássemos menos com ela. As memórias tecidas em torno do objeto vão sendo esgarçadas. Cada fio de memória é visitado e revisitado, com a liberação do afeto a ele ligado.

Ao longo do tempo, acabamos por nos desligar progressivamente do que foi perdido e então voltamos a nos interessar pela vida. Cada fio desfiado do tecido de memória e solto e, com isto, a capacidade de ligação se torna novamente disponível.

A culpa pode nos tomar em algumas das fases do luto. A forma mais comum é os recriminarmos por não termos dito ou feito tudo o que poderíamos, por nos sentirmos em falta com o objeto. A psicanálise também aponta uma base oculta para nossa culpa. Toda relação afetiva é ambivalente, mas evitamos lidar com isto reprimindo sentimentos hostis. A perda do objeto pode ser vivida como a realização mágica de uma fantasia nossa.

Há outro momento que pode nos gerar culpa, como quando nos flagramos disponíveis novamente para investir em novas relações: “como eu posso estar feliz se aquele que eu amava não está aqui?”, ou “eu achei meu amor por ela era único e que eu jamais amaria novamente alguém”. Este momento é vivido como uma segunda morte: a morte da sacralidade do objeto ante a renovação de nossa capacidade de amar.

Por fim, realizado o luto voltamos a vida, e o fazemos transformados, uma vez que incorporamos características do que se foi.

Aquilo que foi perdido sobrevive em nós, integrado ao nosso ‘eu’. Aliás, é assim que se faz e refaz o eu, através do luto e incorporação de cada relação que estabelecemos, perdemos e elaboramos.

Caso o luto não possa ser cumprido, restam pendências e, em geral, a tendência a repetir impasses e problemas anteriores. O que não é bem elaborado, volta como sintoma. Como se diz: a história se repete sob a forma de farsa, ao menos enquanto seus nós não forem desatados.

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