Pedro de Santi
SERVIÇO: Fórum de Comunicação e Consumo do Mercado Grisalho. Dia 9 de maio, na ESPM. Informações e inscrição: http://forummercadogrisalho.com.br/
Imagine-se na seguinte situação de emergência: você precisa escolher entre salvar a vida de uma criança ou a de um idoso. A quem você salvaria? Provavelmente, a maior parte de nós optaria pela criança, com o argumento de que ela teria mais tempo de vida pela frente. Há alguns anos, o psicanalista Contardo Calligaris propôs, em sua coluna semanal da FOLHA, que talvez o idoso devesse ser salvo: ele seria detentor de uma sabedoria de vida que poderia ser transmitida a muitas pessoas. Aquela sabedoria deveria ser altamente valorizada pelo grupo social.
Mas nossa sociedade tende a valorizar o novo. O mundo moderno se caracteriza há mais de 500 anos pela quebra de tradições, pelo elogio do indivíduo e da liberdade. Ele é voltado para o futuro e, neste sentido, a aura no ‘novo’ brilha isolada.
‘Inovação’ é uma das palavras chave, hoje. Num mundo em aberto, em constante transformação, modelos velhos já não atendem à realidade. Hoje, não é possível discordar disto, mas deve-se observar que esta direção pode se tornar um ataque à toda a cultura; o saber acumulado por milênios. Ao de desqualificar a cultura e a sabedoria, ficamos condenados a “inventar a roda” a cada vez. Quando traduzido a um plano moral, a conclusão passa a ser: novo é bom, o velho é ruim.
Além disso, no mundo conectado, considera-se que todas as informações são disponíveis a todos online, de forma que não se reconhece um lugar de valor e autoridade para o saber dos mais velhos. É a confusão entre informação, conhecimento e sabedoria; coisas tão distintas.
Envelhecer num mundo assim ganha uma dimensão de negatividade. Significa estar fora do jogo social, do centro onde as coisas decisivas acontecem.
Ao mesmo tempo, num paradoxo, nesta mesma sociedade a expectativa de vida cresce aceleradamente. Mais do que isto, graças a avanços na área da saúde, a qualidade de vida de pessoas mais velhas também tem melhorado muito. Há todo um espaço de vida- ou o espaço de toda uma vida- entre alguém ser considerado pertencente à terceira idade (65 anos) e vir a morrer (Segundo o IBGE, em 2019, a expectativa de vida no Brasil era de 80 anos para as mulheres e 73 anos para os homens).
Como dar positividade à este período da vida?
A experiência do envelhecimento diz respeito à percepção de que as transformações contínuas do corpo, da carreira e da vida em geral entraram numa curva descendente. O sentido de onipotência do eu já não pode negar a própria mortalidade. Esta é a ferida narcísica maior. Mais dores e doenças, tempo maior de recuperação, diminuição do desejo do outro e do próprio, estreitamento severo de oportunidades profissionais.
É claro que isto possui inúmeras gradações, em termos de carreiras que exigem mais ou menos juventude; pessoas que constituíram família e encontram nelas sua identidade; pessoas que “envelhecem melhor ou pior”, etc.
Mas parece que as pessoas não temem a morte tanto quanto a decrepitude: a perda de recursos sociais, físicos e mentais. É o risco da perda de nossa própria identidade.
Lembro de uma paciente na faixa dos 50 anos que dizia ter passado boa parte de sua vida tendo que lidar, com desconforto, com o assédio pelo desejo masculino. Cantadas e olhares constantes, mais ou menos educadas. Esta experiência tendia a ser invasiva ou abusiva. A partir de certo momento, percebeu que, quando saia com sua filha adolescente, os olhares se dirigiam mais à filha do que a ela. Então, sentiu um arrepio na espinha ao perceber que não era mais alvo daquele olhar desejante. Do desejo do outro que excede ao desejo do outro que falta. Com muito senso de humor, ela dizia que por vezes passava propositalmente em frente a construções para ver se ainda mexiam com ela…
Nossa identidade é constituída e sustentada em esquemas de reconhecimento e espelhamentos. Como o tema deste Fórum é comunicação e consumo, vale a pena observar que aquela construção e sustentação passam fortemente pelo consumo: portamos sobre nós marcas e símbolos que visam nos tomar identificáveis como detentores de certo valor social. Envelhecer diz respeito também à quebra de certos espelhos, ao surgimento de espelhos novos nos quais não nos reconhecemos, assim como na diminuição de espaços e pessoas que compartilham nossas referências.
Há quem procure se agarrar de forma quase alucinatória à sua identidade anterior, e procure algo como “reservas ecológicas” cada vez mais estreitas onde tentam sustentar-se. Faço aqui uma referencia que só os mais velhos terão em mente: o filme “O crepúsculo dos Deuses” (“Sunset Boulevard”, Billy Wilder, 1950), no qual a atriz Norma Desmond, que fora uma diva do cinema, torna-se reclusa e dependente de um único espelho para evitar o contato com sua decadência. Isto evoca parte do mercado de estética “antiaging” e homens na “idade do lobo”, que passam a depender de insumos químicos para sustentarem seu desempenho sexual; mais em busca de autoafirmação do que propriamente de prazer. “Eu queria querer”, é um tipo enunciado comum no atendimento psicanalítico.
Há também quem se disponha a fazer o luto pelo que está a perder, sem nega-lo, e procure se apropriar das marcas do tempo em novos eus, que não negam ou impõem o velho. Aqui, há verdadeira transformação e ressignificação.
Para os tipos extremos que mencionei acima e todas as variações da realidade, há uma tarefa rica a ser realizada em termos de estratégias de comunicação. Pessoas chegam a ser grisalhas em condições diferentes, mas quase sempre em busca de afirmação identitária, com desejos e recursos a serem canalizados. E trazendo muita coisa na bagagem.