Carlos Frederico Lucio
A super exposição midiática a que o Brasil está sendo submetido por protagonizar grandes eventos que o projetam internacionalmente nos trouxe alguns questionamentos sobre nós mesmos. Estes vão desde perguntas sobre nossa “capacidade” performática com relação ao gerenciamento de um mega evento internacional de dimensões continentais frente aos (imaginariamente) cobiçados cidadãos do “primeiro mundo”, até mesmo a capacidade de concretização daquilo a que nós nos comprometemos em realizar no campo da infraestrutura.
O cenário da Copa do Mundo e a série de reflexões e debates que vem ocorrendo (no âmbito acadêmico, no senso comum, na vida política, na imprensa, enfim, nas mais variadas esferas) vem comprovando isso. O desenrolar dos acontecimentos que precederam a concretização do evento também evidenciou uma certa característica cultural pela qual nós mesmos nos reconhecemos: uma indolência que vai procrastinando todos os compromissos até que chegue a “última hora”, a “linha da morte” (adoro esta expressão traduzida literalmente do inglês) e aí, damos de ombro e dizemos: “Ah, vai assim mesmo, do jeito que está!”. Muito já se escreveu sobre isso desde a época em que se confirmou o Brasil como sede da Copa este ano e das Olimpíadas em 2016. Se é certo também que não é o primeiro grande evento internacional que o Brasil sedia, é certo que é o primeiro em dimensões continentais que ocorre num momento de uma pretensa “maturidade” do processo de modernização do Estado e da sociedade brasileiras.
Por isso, no limiar de sua concretização, a novidade talvez esteja, desta vez, no fato de que vários governos dos países participantes do campeonato, de forma quase simultânea, elaboraram algumas “cartilhas” com orientações práticas para seus cidadãos destacando possíveis “perigos” e “dificuldades” que poderiam enfrentar aqui. Tudo bem que haja o aspecto pragmático do ponto de vista desses governos, cujo interesse maior é o de se preservar e minimizar desgastes com eventuais intercorrências com seus cidadãos em solo brasileiro. Afinal, qualquer sinistro ocorrido gera algum tipo de transtorno para suas representações oficiais o que lhes pode causar embaraços em seu próprio território. Até por este motivo, é compreensível que os “defeitos” (e não as qualidades) sejam os destaques dessas cartilhas. Mas esse não é o único aspecto. Está em jogo também uma série de estereótipos construídos (por “eles” e por “nós”) sobre o que é o Brasil e quem somos nós, brasileiros.
De todas as orientações do material em questão, é curioso observar que, de forma direta ou indireta, estão presentes algumas “chagas” constantes e quase que eternas dos traços arcaicos da sociedade brasileira e que aí são expostas de maneira muito explícita. Isso gerou algum burburinho e incômodo, tanto nas esferas oficiais quanto no próprio senso comum do brasileiro médio, o que foi capitaneado pela grande imprensa: chamam a atenção para nossa desorganização (nas várias esferas – pública, estatal, privada), nossa falta de compromisso, nossa malandragem, nosso espírito de “levar vantagem” etc. Nesse rol, até os elementos da nossa exuberante natureza são postos como uma ameaça à integridade física dos visitantes, como que se remetesse ao universo da anticultura, da selvageria (como indica a chamada do UOL “Até macaco vira motivo de alerta de embaixadas para turistas na Copa“). Afinal, por que macacos perambulando em parques ou quintais são “selvagens” e “ameaçadores”, evocando a necessidade de uma atenção especial, enquanto os esquilinhos do hemisfério norte seriam “fofinhos” e “bucólicos”?
À parte as críticas que podem ser feitas a certos exageros e detalhismos desnecessários que contêm alguns desses materiais, no fundo, o seu cerne reflete características arcaicas muito presentes em nossa sociedade e que são um fato. E é isso o que parece incomodar. Aí, para nós, fica a velha lição da dialética da alteridade: se somos vistos de certa maneira por vários “outros”, alguma consistência concreta deve haver nesse olhar estrangeiro. Algo importante ele fala sobre nós. Caberia a nós, portanto, prestar atenção a este discurso e encarar uma reflexão sobre a sua real consistência. E, nesse processo de reflexão, desprezar os devaneios ancorados em estereótipos que não correspondam à realidade e até mesmo deles fazer troça. Mas é preciso olhar para eles antes de menosprezá-los de antemão.
O que talvez haja de mais significativo nesse caso em particular seja o fato de que esse olhar revela traços dos quais não gostamos. Soma-se a isso o hábito de que nós brasileiros temos (que eu, particularmente não considero muito saudável, por ser uma prática quase exclusiva) de falar muito mal de nós mesmos. Reiteramos no nosso cotidiano o famoso jargão rodrigueano de que “o brasileiro sofre de um complexo de vira-latas”. No entanto, quando se trata de um “outro” a falar mal de nós, é comum torcermos o nariz e levantarmos a voz defendendo nossas “virtudes” as quais, diga-se de passagem, não são concretamente valorizadas no nosso cotidiano e, talvez até por isso, tornem o nosso discurso sobre elas pouco convincente.
Voltando a esse olhar estrangeiro que ressalta nossos traços “quasimodais”, é óbvio que ele está alicerçado num conjunto estereotipado sobre quem somos. Mas toda construção cultural que um outro faz sobre um suposto “eu” é estereotipada e fortemente etnocêntrica. Inclusive a nossa sobre nós mesmos. E é bom não nos esquecermos que essa relação “eu”/”outro” é sempre uma construção. Até porque, essas categorias não têm existência própria. Um “outro” só é um “outro” porque um “eu” o coloca nesse lugar de objeto, de coisa. Ele, na verdade, é um “eu”, tem uma subjetividade, como qualquer “eu”.
É nesse sentido que essas observações dos estrangeiros sobre o Brasil deveriam servir para nos fazer pensar sobre nós mesmos. Afinal, esta é uma das lições básicas evidenciadas pela Antropologia: o outro é um espelho a partir do qual eu me vejo a mim mesmo. E seria interessante tomar desta máxima uma ideia menos trivial do que uma sua simples leitura direta (aquela que me leva a tomar literalmente o discurso do outro sobre mim). Antes, o que talvez seja mais importante é prestar atenção sobre como eu o interpreto, como eu vejo o discurso desse outro sobre mim. Na medida em que este procedimento revela quais os filtros simbólicos são utilizados para concretizar esta interpretação. Isso, na verdade, fala muito mais sobre mim do que o próprio texto do outro a meu respeito. Assim como, todos sabemos, este é também uma construção que fala muito mais “dele” do que “de mim”.
Falando dessa construção de estereótipo presente nessas orientações dos governos estrangeiros sobre o Brasil, presenciei diálogos curiosos. Quero mencionar apenas um, muito significativo. Quando mencionei para várias pessoas que, por exemplo, o Canadá orientou seu cidadão a ter cuidado com “macacos”, ouvi a seguinte fala: “Ah, mas eles devem ter pensado no pessoal que vai ver a Copa em Manaus!” Ora!!! Não nos portamos com os manauaras exatamente igual aos canadenses? Não estaria no horizonte do nosso imaginário a ideia de que Manaus é uma cidade-floresta, em que símios trafegam por todas as partes e cobras rastejam por trilhas ao invés de carros em avenidas? Assim, é bom sempre lembrar que se o habitante urbano do centro sul brasileiro fica muito incomodado quando um americano pergunta se tem “macaco nas nossas praias”, mas, olhando internamente, o seu movimento em relação a outras regiões do Brasil (principalmente aos estados do norte ou as regiões rurais) não é muito diferente dessas construções estereotipadas.
A frase título que escolhi para este texto é atribuída a Tom Jobim. (“Este é um país em que as prostitutas gozam, os traficantes cheiram e em que um carro usado vale mais que um carro novo. É ou não é um país de cabeça para baixo?”) Gosto muito dela. Marcada pelo bom humor frequentemente mordaz, característico do compositor, ela indica que somos complexos como nação, como país. Até aí, nada de mais. Toda sociedade o é. Entretanto, ao contrário do que afirmam certos chavões do senso comum muito difundidos nas mídias sociais, Jobim (incorporando – consciente ou inconscientemente – uma perspectiva presente na obra de Darcy Ribeiro ou de Glauber Rocha) nos chama a atenção para pensar esta complexidade e estaria aí uma grande contribuição nossa ao mundo. Somos complexos e isso é bom! Para nos entender, é preciso parar e pensar.
Aliás, eu conheci esta frase de Jobim como título de um livro em homenagem aos 20 anos de “Carnavais, Malandros e Herois”, de Roberto DaMatta, um dos nossos grandes intérpretes. O Brasil é um país que produziu muitos pensadores a respeito de si mesmo. Seja no campo científico (antropologia, ciência política, economia, sociologia etc.) ou no campo artístico (especialmente na literatura, mas também na música, artes plásticas, cinema etc.), encontramos uma constelação de intelectuais do mais alto gabarito com diferentes abordagens refletindo sobre nossa identidade, sobre nossas peculiaridades, sobre a nossa contribuição para o mundo. Este panteão, ao longo do século XX, projetou o país num cenário de excelência do pensamento moderno que é muito pouco conhecido do brasileiro médio. Isso porque quase todos são muito pouco lidos fora do mundo acadêmico.
Se quisermos nos compreender mais para que nos valorizemos mais, assumindo nossas contradições reconhecendo nossas virtudes (a despeito de nossos defeitos), precisaríamos lê-los mais. Quem sabe assim, conseguiríamos dialogar melhor com a construção desses estereótipos e decidir que tipo de sociedade queremos com um pouco mais de consistência, antes de reproduzirmos e reiteramos, nós mesmos, alguns desses estereótipos.
Que esse momento da Copa nos dê esse ganho que, no meu entendimento, acrescentaria muito ao Brasil e aos brasileiros. Vamos aprender mais sobre nós mesmos. (Veja a entrevista da Editora Boitempo no endereço: Antonio Candido indica 10 livros para conhecer o Brasil )