“Nise – O Coração da Loucura” (Dir.: Roberto Berliner. Brasil, 2015)

Eduardo Benzatti

Se você correr ainda dá tempo de ver no cinema – que é sempre mais legal do que assistir na telinha da sua tv – o filme “Nise – O Coração da Loucura” do diretor Roberto Berliner e que tem a ótima Glória Pires no papel da psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999). A Doutora Nise ficou conhecida no Brasil (e no mundo) pelo trabalho que desenvolveu no Setor de Terapia Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, nos anos 40 do século passado.

Numa época em que era “natural” e “científico” empregar eletrochoque e mesmo a lobotomia no tratamento de esquizofrênicos – ou quem assim fosse diagnosticado -, a Doutora Nise revolucionou as práticas psiquiátricas ao utilizar a pintura e a modelagem com o objetivo não somente de diagnosticar a “doença mental” daqueles “clientes”, mas também possibilitar a eles reconstruírem os vínculos com o mundo real através do simbólico artístico. Baseando o seu trabalho na teoria da Psicologia Analítica do psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) – de quem foi correspondente e amiga –, Nise da Silveira proporcionou aos internos um tratamento mais humano que estimulava a autonomia, a individualidade e a criatividade daqueles que a sociedade classificava (e ainda classifica) como “entulho humano” – e que na época eram jogados nos manicômios e hospícios do país (e hoje, depois de tanta luta antimanicomial, nós jogamos nas ruas).

É emocionante ver como afeto e arte transformou a vida de tantos indivíduos trancados em sua loucura. Ao produzirem suas obras repletas de símbolos do Inconsciente Coletivo (Mandalas, estrelas de oito pontas, e outras ricas imagens arquetípicas) e individual (imagens de um passado e de uma infância conturbada também do ponto de vista emocional), os quadros, desenhos e esculturas vão desvelando aspectos centrais (ou “complexos” na perspectiva Junguiana) e traumáticos das suas neuroses. Muitos alcançaram a “cura” e puderam ser reintegrados na sociedade de gente “normal” – que eu como psicanalista nunca vi por aí.

Esse fascinante acervo artístico – que retrata o inconsciente em “estado puro” – foi o início do acervo da outra grande obra da Doutora: a criação, em 1952, do Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro. Centro de estudo e pesquisa – que também é depositário dos trabalhos produzidos na instituição – o Museu preserva e valoriza um material singular que possibilita aos pesquisadores da área “psi” (psicólogos, psicanalista e psiquiatras) uma compreensão mais aguda do mundo interior do esquizofrênico e de outros “doentes mentais”. (Você pode visitar o Museu de Imagens do Inconsciente pessoalmente ou pelo site da instituição).

Um pouco também da vida pessoal, do envolvimento da Doutora Nise com o Partido Comunista Brasileiro e com intelectuais da época no Rio de Janeiro, e suas trocas de cartas (e ideias) com Jung é retratado nesse belo filme que prova que a produção brasileira de ficção pode ir muito além dos “besteróis” que ocupam tantas salas de cinema do país. (Em tempo: um longo documentário sobre o trabalho de Nice da Silveira já havia sido realizado, na segunda metade da década de 80 do século passado, pelo cineasta Leon Hirszman (1986-2014), chama-se “Imagens do Inconsciente” e deve ser visto por quem se interessa pelo assunto).

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