Medo e insegurança: o abalo das ficções necessárias

Pedro de Santi

Uma vez mais, nos deparamos com o horror do terrorismo internacional e da negligência sobre a infra-estrutura de nosso país. Ficamos sabendo, ou lembramos, que nossas bases são menos sólidas do que pensávamos. E elas podem ruir.

Nossa condição de vida cotidiana se sustenta sobre inúmeros pressupostos tácitos. Certa estabilidade das coisas, das pessoas e de nós mesmos são crenças de base. São molduras invisíveis mas sempre presentes, condições de possibilidade das tramas que animam nossas experiências: o trabalho, o estudo, as relações afetivas, a política, o lazer. Precisamos crer em ‘identidades’: que seres permanecem idênticos a si-mesmos ao longo do tempo.

Erasmo de Rotterdam mostra isto com a sabedoria dos céticos do Renascimento em seu livro mais conhecido, “O elogio da loucura” (1509): sem ela e alguns de seus companheiros, não conseguiríamos viver. O esquecimento, sobretudo: se nos lembrássemos a cada momento da finitude de tudo e todos e de quão longe o ódio e a ignorância podem levar o Homem, seria impossível tocar a vida. Gente muito antipática, como Nietzsche e Freud, faz questão de lembrar que nos sustentamos sobre ficções necessárias.

Há uma segurança básica que sustenta a vida comum. Ela é desenvolvida muito primitivamente, pelos cuidados que recebemos ao nascermos, na situação prematura e de desamparo que caracteriza a espécie humana. Em geral, figuras relativamente estáveis operam a maternagem e aplacam regularmente nossas aflições básicas, criando uma sensação crescente e duradoura de segurança, o que leva ao domínio relativo de nossos medos da dor e do abandono. O medo da morte, propriamente dito, só pode ser concebido no fim da infância, quando a negatividade passa a poder ser representada. Caso haja falhas importantes na estruturação de base, isto gera graus variados de comprometimento na condição de estabilidade mental e na capacidade confiar em si e no mundo.

Quando irrompe algo que nos lembra que as coisas não são assim tão estáveis, aqueles que desenvolveram sua confiança básica nas coisas são devolvidos a um estado de desamparo primitivo. Retomamos a consciência sobre a condição humana, nossa fragilidade e condição de sofrer e produzir estragos nas relações com os outros.

Em momentos como este, é como se tudo parasse. As tais tramas do dia a dia parecem então pequenas, em perspectiva. É quando se percebe os buracos mais embaixo, sob o ruído lá de cima.

Imagine-se uma cidade à beira de uma barragem que se veja inundada por um mar de lama tóxica, destruindo toda a condição de vida que se tinha; imagine-se um Estado vizinho que assiste, impotente, aquele mar de lama avançar por centenas de quilômetros pelos rios, matando toda a vida que existe nele e no entorno, vindo em sua direção; imagine-se num restaurante ou show e, de repente, dar de cara com pessoas armadas atirando a esmo, matando e ferindo de verdade, colocando sua vida em risco. Tudo isto, que é concebível como roteiro de filme, pode atravessar o campo da representação e acontecer de fato a nós e aos nossos próximos.

Independente no número de mortos ou da duração real dos estragos produzidos, a irrupção do horror real produz uma desestabilização no campo do simbólico, dentro do qual vivemos. Aqueles que consideraram irracional a comoção produzida pelas mortes em Paris -quando todo o dia centenas de pessoas são exterminadas na África, por exemplo- ignoram a condição simbólica da experiência humana. Ignoram o principal, portanto. Sim, mesmo que isto nos pareça errado, Nova York (dos atentados de 11/09/2001) e Paris são representações simbólicas privilegiadas do mundo ocidental, com o qual nos identificamos.

Com aquele abalo, planta-se a insegurança e se faz renascer nossos medos mais primitivos. E, com eles, nossas defesas igualmente primitivas. Dissociação: dizemos que somos bons e fomos atacados pelos maus; dizemos que as coisas eram perfeitas antes, e só se estragaram pela ação da catástrofe. Ódio reativo e identificação: uma vez que fomos agredidos, consideramos ter o direito de agredir, liberando um grau de destrutividade que já tínhamos em nós, mas que contínhamos até então. Ao fazê-lo, nos igualamos aos agressores, que reagirão numa escalada crescente.

Nosso amor nem sempre é correspondido, mas nosso ódio…

O sentimento de segurança abalado e o medo reinstaurado custam a passar. Mesmo com os objetos de ataque desaparecidos, eles permanecem residualmente por muito tempo. Enquanto isto, permanecemos com a guarda alta. Fechamos nossas fronteiras em torno do que nos seja mais familiar e assegure nossa identidade, expulsamos qualquer índice de risco. E esta é mais uma pedrinha no muro do conservadorismo crescente no mundo (“Another brick in the wall”, para quem se lembra da música e de seu contexto).

Espero que possamos fazer o luto elaborativo dos acontecimentos recentes, com a chance de nos transformarmos para o futuro. Senão, já já a Ninfa Esquecimento fará seu serviço, pelo menos até a próxima.

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