Mas afinal, é a família universal?

Carlos Frederico Lucio

Um dos temas mais clássicos e fundantes da Antropologia como ciência, os estudos sobre família, parentesco e casamento representam um dos seus campos de estudo mais complexos e, também uma principais tópicos que consolidam aquilo que é o epicentro desta área do saber: o estudo sobre a enorme diversidade de manifestações do ser humano como sociedade e como cultura. Se você quer verificar como as sociedades se diferenciam em aspectos que você consideraria universais, observe como elas se organizam socialmente e verá que o conceito de família, em cada uma delas, pode ser profundamente diferente, cobrindo uma gama surpreendente de diversidade. Esta informação, à primeira vista, costuma chocar quem não é da área. Afinal, que história é essa? Como assim, família não é composta de pai, mãe e filhos? É possível que haja outros modelos?

Claro que sim! E isso não acontece apenas nas sociedades consideradas, aos nossos olhos, exóticas, aquelas que não são pautadas pelos princípios religiosos ocidentais do judaísmo e do cristianismo. Acontece também entre nós, dadas às modificações culturais e de valores que nossa própria sociedade passou ao longo das últimas décadas.

As distintas formas de organização familiar estão, sem dúvida, entre as maiores riquezas da diversidade do patrimônio cultural humano. E, diga-se de passagem, constitui um dos atestados mais profundos de que o ser humano se constrói exatamente se afirmando contra determinismos da natureza pretensamente afirmados pela biologia (ciência) – e frequentemente evocados pelo positivismo ocidental para “justificar” certas práticas como “naturais” ou “normais”. Mas o que frequentemente se esquece é que um dos focos da construção social da família reside na regra universal da proibição do incesto que, por sua vez, é justamente nossa maior marca de “rebeldia” contra aquilo que seria considerado totalmente natural: se, do ponto de vista da natureza, a função da distinção de sexo é para mera e simplesmente procriação, o que me impedira de, em sendo um XY, copular com minha mãe, irmã ou filha, já que elas são (deste ponto de vista natural) meros XX? Não é isso o que fazem os animais? [E nem adianta alegar o argumento simplório de que não o fazemos para não gerar rebentos geneticamente anômalos porque, se a humanidade não tivesse inventado a regra da proibição do incesto há milênios, a seleção natural já se teria encarregado de eliminar essas anomalias, minimizando muito a sua possibilidade de aparição. E hoje, copular com mãe, irmã ou filha não me traria quase que certamente nenhum problema deste tipo. Óbvio está que este não é o motivo.] Reconhecendo sua importância na manutenção dos laços de sociabilidade, todas os grupos humanos construíram uma regulação para a concretização deste princípio (a proibição do incesto e, consequentemente, a “cópula”), estabelecendo um conjunto de regras e obrigações sociais e individuais por meio de acordos com grupos distintos (utilizando-se, para isso, das uniões entre dois indivíduos) no que se configurou como “casamento”. É assim que, para além da esfera das relações entre dois indivíduos, o casamento e a família se constituem, universalmente, um núcleo importante onde direitos e obrigações são definidos para que o indivíduo possa se situar dentro e fora do seu próprio grupo social. E, de quebra, estabeleceu-se uma distinção que é muito clara em sociedades sobre as quais o  peso moral e religioso é menos presente: sexo é uma coisa; casamento é outra.

Desta maneira, o casamento assume, para cada sociedade, um significado e uma configuração bem distintos, criando uma variedade de tipos e modelos por todo o planeta que enriquece, como se disse, a diversidade cultural da humanidade. E, consequentemente, a noção de família também. Por todo o Globo, não existe uma única forma (nem fórmula) para que isso se concretize, uma vez que cada grupo sociocultural faz suas escolhas sobre como se organizar. E todas elas, como qualquer fato da cultura, possui princípios lógicos que lhes garante uma operacionalidade compondo seu eixo funcional fundamental: a perpetuação (física e social) do grupo.

Se, do ponto de vista etnográfico, podemos constatar esta variedade imensa de tipos de organização familiar, a modernidade trouxe, no interior da própria sociedade ocidental, também uma variação igualmente grande, na medida em que a quebra da hegemonia dos princípios religiosos como orientação da formação dos núcleos familiares abriu-a a esta possibilidade. Desde a inclusão do divórcio, com reconfigurações familiares, a consolidação da realidade das mulheres que optam por serem mães “independentes” até as relações homoafetivas, a relativização da configuração e da importância da família tradicional vem se consolidando no nosso mundo e apresentando desafios no campo jurídico e social.

Há alguns meses, recebi pelo meu perfil no Facebook o link para votar numa enquete promovida pela Câmara dos Deputados, a respeito do conceito de família, tal como está formulado no Projeto de Lei 6583/2013 que institui o chamado “Estatuto da Família”, um arrazoado de artigos que pretendem garantir direitos ao que seria, nos termos do próprio projeto, “o primeiro grupo humano organizado num sistema social, funcionando como uma espécie unidade básica da sociedade”.

A pergunta da enquete é (muito provavelmente em tom proposital) pode induzir o leitor (especialmente o mais afoito) a uma armadilha lógica:

“Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?”

Na página da enquete há um link que abre uma página do site da Câmara dos Deputados, com um breve artigo explanatório sobre a proposta e o link para que se tenha acesso direto ao Projeto de Lei em questão. Nele, além da explanação dos direitos do cidadão e obrigações do Estado, vamos achar, logo nos parágrafos iniciais, o fundamento e razão de ser da enquete.

Art. 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Art. 3º É obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária.

Se tomarmos o cuidado de considerarmos o alvo principal do texto, garantia de direitos (e, deveres do Estado) para com aquilo que se entende por família, entendemos a importância desta discussão. Entretanto, o que passa desapercebido para muitos é o seu ponto de partida bastante retrógrado e profundamente etnocêntrico, desprezando não somente o fato de que o conceito cristão ocidental de que a configuração do que é família não é universal, como o fato de que a própria sociedade já aprovou (direta ou indiretamente) outros modelos familiares que nele não se encaixam. Fora o fato de que o projeto versa sobre temas já contemplados em outras instâncias da esfera da proteção da pessoa (seja ela sob que aspecto se quiser considerar: idoso, criança, homem, mulher etc.).

O Estado brasileiro, herdeiro da hegemonia da tradição judaico-cristã na sua formação (e no conceito de família) tem uma dificuldade muito grande em incorporar verdadeiramente o caráter plural exigido por uma plena democracia moderna e considerar as mudanças pelas quais o mundo passou nas últimas décadas, especialmente no campo das relações familiares. Por isso mesmo, vive uma grande dificuldade em incorporar no seu escopo de discussão essas variações. Por mais que desejemos um estado laico, ainda somos muito influenciados por esse viés religioso que ainda insiste em se apresentar como conservador, arcaico e, muitas vezes, autoritário.

A existência de uma enquete como esta é reveladora desta dificuldade. Ao afirmar o casal homem/mulher como núcleo do que se define por família, deixa-se de lado o que a jurisprudência já tem reconhecido, que é a realidade dos casais homoafetivos (masculinos e femininos), por exemplo. Além do mais, deixa bastante vaga a possibilidade de se reconhecer como família as unidades sociais formadas por uma mulher (ou homem) solteira e seus filhos ou mesmo uma mulher cujos filhos podem ter mais de um pai. Enfim, aquelas formas de configuração familiar que escapa ao dogmatismo religioso cristão. (A este respeito, já tratei num outro texto sobre o concílio do de Bispos católicos a respeito da família: Tradição – sexualidade e família na visão do Vaticano.)

Ademais, por que eu tenho que decidir numa lei o que é família se esta decisão vai afetar outras pessoas que não pensam nem agem como eu penso e ajo?  Que direito tenho eu interferir no direito do outro de ser como quer ser? Que democracia é esta que condena uma massa de pessoas a ficar na margem da proteção de seus direitos e não atendidos por eles?

Por todos estes motivos, penso que a discussão que ora se apresenta na enquete proposta na Câmara é, não somente absurda deste ponto de vista, como também totalmente desnecessária, além de reacender, sob vários aspectos, um debate bizantino e retrógrado. Creio que nossos deputados têm coisas muito mais prementes, urgentes e necessárias a tratar.

Sugestão:

Leia mais sobre a proposta no link: Enquete sobre o estatuto da família bate recorde.

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