Loucura e internação compulsória. Algumas sobreposições perigosas – I

Professor Pedro de Santi

O governo do Estado de São Paulo está colocando em prática neste momento uma medida polêmica: a internação compulsória (sem o consentimento da pessoa) em situações ligadas ao consumo de drogas, mais especificamente, o crack. O dependente é tomado como alguém que perdeu a condição de auto-crítica e capacidade de reconhecer ter perdido o controle sobre a situação. Desde que a medida foi adotada, assistimos; de um lado, situações trágicas de familiares que anestesiam um pai ou filho para os levarem à internação; de outro, as autoridades públicas explicando que as internações serão criteriosas e somente em caso de extrema gravidade.
A internação psiquiátrica costuma ser mais associada aos loucos. A extensão de seu uso aos dependentes químicos acaba por aproximá-los dos estigmas associado à loucura.

A loucura é, obviamente, um tema muito amplo, capaz de disparar os mais diversos caminhos de reflexão. Trago aqui uma contribuição de minha perspectiva; psicanalista e professor universitário na área de Ciências Humanas.
Desde o trabalho de referência de Michel Foucault (História da loucura na Idade Clássica, 1960. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.), entendemos que o uso do termo ‘loucura’ serve para desqualificar alguém e é usado como diferença radical com relação ao que define a identidade de uma pessoa, ou mesmo, uma cultura. Louco é o não-eu. Chamamos de louco aquilo ou aquele que não entendemos, que é tão diferente de nós que não conseguimos reconhecer, atribuir sentido. Chamamos o que parecer sem sentido de insensato; louco, enfim.

Desta perspectiva, é comum que se denomine louco e se acione mecanismos de exclusão frente a pessoas que simplesmente pensem de forma radicalmente diferente da nossa, não compartilhem nossos valores morais ou religiosos. Identificar alguém como louco é abrir um campo de abuso de poder, intolerância e violência.
Em nossa forma de lidar com a doença mental, vivemos alguns impasses e sobreposições terríveis.

1- Sofrimento mental e exclusão social. O estigma da loucura exclui a pessoa do campo das relações pessoais e do trabalho

O termo ‘loucura’ não é técnico, não pertence ao estudo da psiquiatria ou psicologia para descrever uma doença. Falar sobre loucura não é a mesma coisa que falar sobre formas de estruturação psíquica. Da perspectiva da psicanálise, por exemplo, não há uma desqualificação da pessoa estruturada como neurótica ou psicótica. Isto se dá por um ótimo motivo: não há na psicanálise alguém sem um modo específico de se estruturar ou livre de sofrimento. Não há um tipo “normático”, por assim dizer. Alguém que seja uma referência normativa em relação e diferença ao qual os demais devam ser medidos. Assim, dizer sofrimento mental, neurose, psicose, borderline, etc. não implica dizer ‘loucura’.

A loucura tangencia as organizações mentais no conceito de “doença mental”. Nele, aparece o medo e desqualificação da pessoa associados ao seu sofrimento. A loucura associa-se ao medo da falta de controle, ao caos, à imprevisibilidade. O sofrimento mental de determinadas pessoas leva-as a perder contato com as demais, viver numa realidade própria sem discriminação de que isto esteja acontecendo. Formas de sofrimento assim são associadas às psicoses. Pois bem, aquele que sofre desta forma acaba por sofrer de outro mal, este de natureza social. O estigma da loucura remete ao século XVII- aprendemos com Foucault- e diz respeito à consideração de que o Homem tem sua existência fundamentada em sua razão. É ela que o define e garante. Assim, tudo aquilo que possa remeter a perda da razão (doença mental, drogas que alterem a consciência, etc.) acaba por implicar na perda da própria humanidade. Se um homem perde a razão, ele já não é um homem, mas um animal irracional. Aqui, não há meios termos: ou se é louco, ou se é são; ou se tem mente ou se é demente. Esta concepção extremista que opõe ordem e caos é visivelmente exagerada; nem as pessoas estatisticamente normais tem tanto controle racional assim sobre suas ações, nem aquele que sofre de doença mental perdeu por completo sua consciência, em geral. Mas até nossa lei moderna mantem este pressuposto: somos todos considerados responsáveis por nossos atos e por eles temos que responder, a não ser quem tenha um diagnostico psiquiátrico que ateste uma doença mental. Neste caso, a pessoa não é considerada imputável por seus atos.

Alguém reconhecido como louco perde sua condição de cidadania, autonomia, e inclusão social.
A loucura (e toda a forma de sofrimento) de alguém com quem não possuímos envolvimento afetivo não nos gera empatia ou compaixão, predomina o sentimento de medo e repúdio. Mas ao vermos alguém próximo enlouquecer, passamos a temer por nossa própria sanidade. É como se a empatia nos fizesse perceber a proximidade da possibilidade de se perder a razão. Em um caso ou em outro, tendemos a querer distância do louco. Ele dá medo, aborrece, cansa, atrapalha.

Sabemos que a perspectiva do Romantismo (desde o século XVIII) atribuiu ao louco uma aura de sabedoria e liberdade ante as cobranças e renúncias que a vida civilizada exige. Mas esta estetização da loucura e a curiosidade (e mesmo sedução) que ela gera aparece, sobretudo, como idealização à distância, não como convívio.

(leia amanhã: Médico deve ter poderes judiciais e policiais?)

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