Leviatã: obra dos homens, desde o início do início…

Por Prof. Eduardo Benzatti

É um tanto difícil escrever sobre as origens do Estado – ou melhor, de um proto-Estado –, na medida mesma da dificuldade de escrever sobre qualquer assunto que nos remeta à pré-história do homem, ou seja, aos períodos: Paleolítico – ou Idade da Pedra Lascada – que abrange um longo intervalo de tempo: de 4 milhões de anos a 10 mil a.C., e que marca o surgimento do Homo sapiens (há cerca de 200 mil anos). Para alguns historiadores o Paleolítico inicia-se somente por volta de 2 a 2,5 milhões de anos, quando os antepassados do homem começaram a produzir os primeiros artefatos em pedra lascada; Mesolítico – de 10 a 6 mil a.C., que é marcado pelo domínio do fogo, o início da domesticação dos animais e pelo sedentarismo; e o Neolítico – ou Idade da Pedra Polida – de 8 mil a.C. até a invenção da escrita, período caracterizado pelo surgimento e desenvolvimento da agricultura, a formação das primeiras tribos e dos clãs sociais, o aparecimento da cerâmica e da roda de um lado, e da religião e da arte de outro. É sabido que a invenção da escrita cuneiforme (caracteres em forma de cunha), que ocorreu por volta de 6 mil a.C., na Suméria, região sul da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, marca o início daquilo que conhecemos por História, assim o que sabemos desses períodos anteriores é o resultado das pesquisas de antropólogos, historiadores e dos modernos estudos da arqueologia e paleontologia, que reconstituíram os modos de vida dos homens que habitaram este planeta há milhares de anos.
Nesse momento da história do homem (entre 3 mil e 500 e 3 mil a.C.), os registros já indicam, por exemplo, que as cidades-Estados sumerianas eram, na verdade, cidades-templos, pois o povo sumério creditava aos deuses a fundação de suas cidades (os deuses comunicavam somente aos soberanos a arquitetura e os lugares exatos onde as cidades deveriam ser erguidas). A história escrita nos oferece outros dados interessantes: as cidades-templos estavam ligadas também ao poder estatal (talvez uma melhor denominação para elas fosse: “cidades-Estado-templos”), logo o soberano (chamado lugal, que significa rei) era simultaneamente o chefe político e religioso. Decidiam sobre a administração (leis) das cidades-templos, sobre a guerra ou paz, além de adminstrarem os bens e riquezas desses lugares sagrados, ainda que para isso consultassem alguns cidadãos notáveis e tivessem também ao seu serviço uma aristocracia burocrática responsável, dentre várias atribuições, pelo controle do recebimento dos impostos. A constituição social era piramidal: abaixo dessa castra (burocrática, sacerdotal e militar) havia a população, reconhecida socialmente pelas suas funções: do fazendeiro ao negociante, passando por diversas outras ocupações, inclusive já ligadas à arte e ao pensamento. E na base, os escravos capturados ou nascidos em cativeiro. A exploração do homem pelo homem é outra invenção da sociedade histórica.
Porém, há outra forma de tentarmos entender os nossos primórdios: pesquisar o passado não em pistas do passado, mas em testemunhos vivos do presente. Refiro-me ao objeto de estudo por excelência dos antropólogos (ou como preferem alguns autores da área, por precisão do termo, dos etnólogos), ou seja, os chamados grupos ou povos “primitivos”, também nomeados de “primários”, “simples”, “caçadores”, “agrícolas”, “coletores” – dependendo de sua localização geográfica – em contraponto, a nós, os povos “complexos”, “urbanos”, “industriais”. Trata-se daquelas etnias espalhadas por vários pontos da Terra (algumas mais, outras menos isoladas) que passaram e passam por um processo de desenvolvimento sociocultural e material mais lento, quando comparado ao da nossa sociedade. Esses povos “primitivos” – aqui no sentido de “primeiros”, não de atrasados – seguiram caminhos diferentes no seu processo de evolução, que não aqueles trilhados por grande parte dos povos ocidentais, urbanos e industriais. Esses povos – reforço: não atrasados, mas “no seu tempo” – nos oferecem uma oportunidade singular de imaginarmos como viviam grande parte dos agrupamentos humanos, num passado longínquo e anterios à invenção da escrita e do Estado, tal qual o conhecemos hoje.
Logo, outra questão se desdobra de primeira: o que podemos deduzir sobre a gênese do Estado quando observamos a “atual ordem social” desses povos? Tomemos como exemplo as tribos indígenas brasileiras – poderíamos também analisar as tribos africanas, os grupos de aborígenes Australianos, de esquimós ou qualquer outro que se encaixe nesse conceito de “primitivo”, mas, para tanto, usaríamos também diferentes categorias ou conceitos de análise, afinal a concentração e o exercício do poder varia de um grupo para outro –, nessas encontramos (invariavelmente) um chefe “político”, o cacique, e outro religioso, o pajé. Normalmente, essas autoridades tribais são de clãs diferentes. Os clãs são como grandes famílias ou subgrupos que constituem uma tribo de determinada etnia e que podem ser antagônicos ou complementares. Cada uma dessas autoridades tem – e sempre tiveram – funções separadas e distintas, mas ambas são consideradas incontestáveis pelo povo que pertencem. Como possuem funções especiais – o cacique decide sobre os eventuais conflitos internos de seu clã ou da tribo, quando esses não são resolvidos pelos seus próprios membros; o pajé pode se comunicar com os “encantados”, a saber, os espíritos dos parentes mortos – também são portadores de atributos especiais: liderança, sabedoria, experiência que permitem exercerem tais funções. Ou (o inverso também é válido) como esses atributos especiais são legitimados pelo restante do grupo e confirmados na experiência diária do exercício de suas funções, suas lideranças se tornam indiscutíveis. Os mitos, como já dissemos, contribuem reforçando essa configuração social (o papel de cada um no grupo) existente desde sempre, de tempos imemoriais, ao explicarem a origem e a atribuição desses poderes singulares exercidos por determinados e seletos componentes do grupo. O mito reforça a história; a história sustenta o mito.
O que procuramos relatar aqui foi algumas das hipóteses que tentam explicar o surgimento do poder entre os homens num passado muito distante, e que é provável que esteja também aí o início desse poderoso Leviatã Hobbesiano. Qualquer que seja seu futuro: desaparecer junto com as classes sociais como teorizam os marxistas, se tornar um Estado mínimo como desejam os liberais e neoliberais, ser o Estado que promove o bem-estar social das sociais-democracias, ser o Estado autoritário dos regimes ditatoriais (como vimos no Fascismo, no Nazismo, no Stalinismo), ser o Big Brother Orweliano, servir a classe dominante (seja ela uma classe social, uma casta religiosa, uma etnia), ser o Estado teocrático dos regimes dos Aiatolás, o fato é que a trajetória humana prova que o Estado é (e sempre foi) obra dos homens, não imposição divina ou uma fatalidade da natureza, logo caberá a nós decidirmos e construirmos o Estado que entendermos ser o mais justo e apropriado à nossa condição humana e social.

Bibliografia:
Morin, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. Tradução de Hermano Neves. 6ª Ed. Publicações Europa-América. Lisboa: Portugal, 2000. Título Original: Le paradigme perdu: La nature humaine. (Série Biblioteca Universitária, número 7).
______. O homem e a morte. Tradução de João Guerreiro Boto e Adelino dos Santos Rodrigues. 2ª Ed. Publicações Europa-América. Lisboa: Portugal, 2000. Título Original: L’ homme et la mort. (Série Biblioteca Universitária, número 19).
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sum%C3%A9ria. Acessado em 23/04/2012.

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