Pedro de Santi
No último dia 6 de maio, comemoramos o aniversário de Sigmund Freud. A despeito de ser uma figura icônica do século 20, seu pensamento é muito pouco conhecido em profundidade. Como o impacto cultural de sua obra foi enorme, muitos de seus conceitos ganharam um uso corriqueiro; como narcisismo, libido, repressão, etc. Mas esta apropriação natural pela linguagem comum criou grandes mal entendidos com relação aos conceitos, propriamente ditos. Em geral, “gosta-se” ou não se gosta de Freud sem conhece-lo.
Por sua posição forte como pensador e psicanalista é muito comum que novas descobertas científicas sobre a mente não sejam mais do que conceitos freudianos requentados, tomados como novos apenas por quem simplesmente não conhece psicologia. Ironicamente, estes mesmos requentadores- conscientes ou ignorantes disto- costumam bradar que o pensamento psicanalítico está ultrapassado.
No espírito pedagógico do Nota Alta ESPM, proponho apresentar didaticamente conceitos básicos, dois deles por post.
Freud foi um autor de grande inventividade teórica e orientado pela clínica; a produção de conhecimento se dava pelo enfrentamento de situação de sofrimento trazidas por pessoas em busca de ajuda, e não em condições de pesquisa pura. Ele criava conceitos constantemente e, da mesma forma, ressignificava os conceitos já criados. Sempre na interação entre a experiência clínica e o amadurecimento de sua reflexão. Este é um limite a um glossário que se pretendesse totalizante. Aqui, procuramos apenas dar algumas orientações de sentido e história de alguns dos conceitos fundamentais. A partir deles, destaco em negrito outros conceitos a serem explorados e indico ao final de cada verbete alguns textos de Freud de interesse específico sobre cada conceito. O convite é, portanto, que a partir destas portas de entrada, o leitor ingresse numa leitura própria e sistemática da obra de Freud.
Repressão/Recalque (Verdrängung)
Conceito chave da dinâmica psíquica e paradigmático do pensamento de Freud. Ela remete aos conceitos de neurose, inconsciente, mecanismo de defesa e conflito. Em português, o termo é traduzido ora por repressão, ora por recalque. O termo repressão é mais próximo do alemão.
A partir da premissa de que o psiquismo é atravessado por um jogo complexo de forças pulsionais que, ora entram em conflito, ora encontram soluções de compromisso, a repressão é um mecanismo de defesa contra o desprazer causado pelo choque entre desejos que parecem incompatíveis. Ela consiste em barrar o acesso à consciência de representações que causam um desprazer insuportável à pessoa. A representação de desejo exerce pressão (drang) em direção à consciência e a mente despende energia e opera uma contra-força, a repressão (Verdrängung). Com isto, o psiquismo se vê cindido num segundo sistema: o inconsciente.
A repressão pode gerar, então, a amnésia relativa ao desejo reprimido, assim como de um grupo de representações a ele associado, para evitar sua evocação. Este modo de repressão é característico da histeria. Há ainda outro tipo, característico da neurose obsessiva. Nele, passam a haver duas representações, aquela portadora do afeto desprazeroso fica no inconsciente, mas outra relativa ao mesmo objeto permanece acessível à consciência, desprovida de afeto: esta é a racionalização
Há outros mecanismos de defesa, como a negação, a recusa e a rejeição. A cada uma correspondem dinâmicas psíquicas distintas. As defesas são elementos constitutivos dos quadros patológicos.
A repressão integra a teoria da neurose da primeira tópica: conflito, repressão, retorno do reprimido. Sintomas, sonhos e atos falhos seriam as formas mais características do retorno do reprimido.
Ler: A interpretação dos sonhos (1900), A repressão (1915).
Pulsão/Instinto (Trieb)
Conceito de tradução polêmica. Há décadas, desde a tradição francesa, traduz-se por pulsão, evidenciando a dimensão de impulso e diferenciando-se do instinto, associado a comportamentos reflexos inatos. Mas a tradução brasileira da editora Cia das Letras (hoje, a principal referência de tradução de Freud em nossa língua) optou por traduzir por `instinto`, tanto o termo Trieb’ quanto ‘Instinkt’, com o argumento de que, em alemão corrente, a tradução seria a mesma; ficaria ao leitor o trabalho de compreender o sentido específico dado por Freud ao termo.
A pulsão é, a princípio, a representação psíquica de um impulso somático. Trata-se de uma dimensão de força ou urgência, que demanda descarga. É a própria força que move o psiquismo; uma energia plástica, capaz de deslocamento, aumento e diminuição, derivada da observação da sintomática histérica, na qual partes do corpo ganham uma excitabilidade aumentada, em detrimento de outras, anestésicas; ou ainda do sintoma obsessivo de ideias fixas, que parecem trazer consigo a carga de outra ideia, reprimida.
Sua dimensão mais forte é a de pulsão sexual. E nela que aparece a forma única e original com que Freud concebe a sexualidade humana. A pulsão sexual diferencia-se do instinto especificamente por não ter objetos e metas naturais, pré-definidos. Ela busca prazer, e as formas e objetos são absolutamente contingentes à história e ambiente cultural da pessoa. Toda uma noção psicopatológica e de aberrações sexuais característica do século 19 é derrubada por Freud com a concepção de que o objeto da pulsão é contingente e passível de substituição. A definição de gênero não é natural e, com isto, desaparece o sentido de tomar formas de orientação do desejo como um desvio. A potência do desejo sexual como motor da atividade mental é uma das características do pensamento freudiano, poucas vezes reencontrada nos psicanalistas que o seguiram
Numa primeira teoria das pulsões, Freud identifica a dualidade pulsão sexual/pulsão de autoconservação. Nos anos 20, uma segunda teoria das pulsões unificou aquelas duas sob a denominação de pulsão de vida, por oposição, a partir de então, à pulsão de morte. De toda a maneira, sempre pareceu essencial a Freud trabalhar com uma dualidade pulsional, o que lhe permite sustentar que a dinâmica do conflito é interna, anterior ainda às questões relacionais ou da cultura.
Ler: Três ensaios sobre a sexualidade (1905), A pulsão e seus destinos (1915), Além do princípio do prazer (1920).