Freefoi: a indústria de produzir cínicos

Pedro de Santi
Em primeiro lugar, antídotos contra o cinismo: nesta terça, 18:00 hs, o CA4D organiza um debate sobre o momento político; e, na quinta, 14:00 hs, vai haver um evento sobre os grandes autores “Explicadores do Brasil”. Na ESPM.
Volto a falar neste espaço sobre a onda de desencantamento que nos submerge já há anos. Naturalmente, não falo da dimensão de ciência política ou jurídica, mas da psicologia coletiva.
Deve ser quase unânime para quem acompanha notícias nos últimos anos que é preciso interromper o ciclo da corrupção que, tendo sempre havido, ganhou dimensões inéditas e institucionais. Nesta dimensão, muitos esperam da operação Lava-jato um avanço na apuração que envolve governo, empresas e bancos. E outros tantos a consideram uma operação persecutória e interessada num único espectro de investigação. O mais patético é assistir ao gozo sadomasoquista de quem julga que a operação seja persecutória quando acusa “os seus” e justa quando acusa “os outros”.
Mesmo para aqueles que creiam na intenção reveladora da operação, a extensão de tempo com o surgimento semanal de novos escândalos e revelações, pingadas de forma programada na mídia, forma um caldo de sentimentos diferentes daquele da renovação ou apuração, ou revolta. Mesmo a revolta mobiliza raiva e movimento de destruição, que acaba por poder gerar criação e mudança.
Mas a repetição dos escândalos e generalização de seu alcance faz com que as pessoas tenham sua esperança minada ao longo do tempo, o que se reverte em algo como uma depressão coletiva. O humor é uma reação a este sentimento mas, do humor irreverente e reflexivo, pode-se passar ao humor debochado e ressentido, que entregou os pontos.
Para lá da desesperança e depressão, está o cinismo. Cinismo com o qual cada delator ex-marqueteiro de confiança ou empresário que teve seu negócio turbinado nos últimos governos lança suas delações. Num ambiente em que parece que não acreditamos em nada, na realidade, acreditamos em tudo de ruim que for dito. O negativo é sempre mais provável.
Assim, vale sempre lembrar que um delator é alguém desonesto ao quadrado. Desonesto no crime do qual participou, ao romper com a lei comum a todos nós; e desonesto na deslealdade com os parceiros de crime, com quem também rompeu o compromisso. Ou alguém considera que algum dos delatores se arrependeu de seus crimes e procura se reenquadrar no mundo da lei?
Mas somos tomados pelo horror de descobrir cada vez mais e, o que é pior, darmo-nos conta de que os esquemas de corrupção sequer foram detidos desde que começaram as investigações. Como efeito disto, passamos a tomar aqueles desonestos ao quadrado como portadores da verdade. Basta a delação, sem as provas que deveriam trazer.
Acompanhar os vídeos de delação do casal de ex-marqueteiros do PT ou dos irmãos sócios da JBS causa náuseas múltiplas: tanto pelo que delatam quanto pela incrível cara de pau com a qual o fazem. Mas a defesa dos acusados transpira o mesmo cinismo, com ares de perseguidos políticos vitimizados. Cada um se dedica a desqualificar o outro, e o resultado é que tudo e todos saem desqualificados.
O efeito de corrosão do pacto social é profundo, isto numa década em que os jovens tem voltado a se politizar. Muita gente teme pela desqualificação da democracia em si, e pela alternativa que historicamente a substitui: a ditadura.
Por fim, o ataque ao estado das coisas como estão é necessário, mas ele precisará ser seguido pelo momento de reconstrução de pactos. Parece que estamos bem longe disto, ainda.
E os pedidos de desculpas das grandes empresas? Dizem estar arrependidas e confiantes de que com esta limpeza tudo será diferente. E os benefícios recebidos pela delação, então? Parecem desproporcionais com relação aos crimes admitidos. Se o grupo dono da JBS freefoi- como no trocadilho sem graça que inventei para título deste texto-, foi livre morar nos EUA, terá saído barato demais frente à dimensão da corrupção da última década e do estrago produzido pela própria divulgação de sua delação. E parece que eles ainda ganharam uma nota especulando com isto. Ladrão que delata ladrão tem cem anos de perdão?
O cinismo social se instala quando aprendemos que o crime mais do que compensa, e a desonestidade ao quadrado mais do que premia.

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