Cézar Veronese , Professor do CPV Vestibulares
“A-la-la-ô ô ô ô ô… Mande água pra ioiô/ Mande água pra Iaiá…” A marchinha de Haroldo Lobo e Nássar, como acontece há décadas, esteve e está na boca dos foliões nesses dias de muito riso e pouco siso. O que talvez muita gente não lembre ou não saiba é que a letra não é uma mera apropriação de referências do mundo árabe. Lançada em 1941, era um deboche à falta de iniciativa das autoridades cariocas para desenvolver uma política séria de combate à falta de água que assolava a cidade. Por isso, a marchinha, 70 anos depois infelizmente mantém a atualidade dos versos.
Mas quem está interessado em falta de água? Ninguém mais aguenta essa história, nem a da Petrobrás (máscaras de sua ex-presidenta compuseram a fantasia de muitos foliões), e de todos os escândalos e falcatruas que impedem a alegria de viver. Precisamos da festa para não explodir como a cigarra por excesso de canto (em nosso caso, por excesso de desgraças).
Remontando à nossa dívida eterna com os helenos, o carnaval já existia uns séculos antes do ano zero da era cristã, que dele se apropriou combinando-o com a quaresma. Da Europa espalhou-se pelo mundo e aí estamos nós, líderes de pelo menos alguma coisa bela e grandiosa. Festa dos sentidos, o carnaval suspende a ordem oficial e instaura um rei provisório cuja ordem é a transgressão. E aí sublimamos, longe do divã do psicanalista, nossas neuras, nossos sonhos e nossas frustrações. Tudo com direito a vestir a fantasia mais maluca e de dizer as cobras e lagartos presos na garganta ao longo do ano.
Essa transgressão foi brilhantemente estudada por Mikhail Bakhtine, que construiu o conceito de “carnavalização da literatura”, identificando uma corrente subterrânea de obras (poemas, contos, narrativas) que, desde a Idade Média riu do mundo oficial, mostrando reis safados, padres amantíssimos, princesas “rodadas”. GARGÂNTUA e PANTAGRUEL (que devem ser lidos com a mão na barriga para segurar o riso), de Rabelais, é o exemplo consumado desse deboche, que irá desembocar alguns séculos depois nas vanguardas.
No Brasil, MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS, a obra de Oswald de Andrade e os périplos de Macunaíma (“nada nas mãos nada nos bolsos”) compõem a tríade que carnavalizou o mundo dos salões de moças puritanas e rapazes prendados.
Enquanto isso, longe dos desfiles idiotas da Marquês de Sapucaí – com suas peruas televisivas, seus sambas enredos idênticos mais a baixaria que todo ano acompanha a computação da votação das escolas -, o carnaval verdadeiro rola nos blocos de bairro do Rio, do Recife e da esquina da sua casa. Não comprou fantasia? Pegue o jornal do dia, componha um capuz com a manchete virada para a parte externa e caia na folia!
Para ouvir depois do carnaval: Ney Matogrosso lançou em 2001 o CD BATUQUE e Ná Ozzetti, em 2006 lançou BALANGANDÃS. Ambos os discos são sofisticadíssimas releituras de marchinhas de carnaval popularizadas por Carmen Miranda.
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