Pedro de Santi
Desde que o filme começou a ser exibido em festivais internacionais e na Mostra de São Paulo, textos excelentes foram produzidos sobre ele. A experiência da gravidez é exposta de forma única e próxima, para além de estereótipos ou idealizações: humano, demasiado humano.
As tensões entre a dimensão universal e a singular da gravidez, assim como a travessia constante entre a ficção e o documentário nos mantêm no embaralhamento irredutível da própria vida.
Quem assistiu ‘Elena’, de Petra Costa, reconhece esta ambientação íntima, funda, prenhe de sofrimento e, ao mesmo tempo, com um trato artístico, belo e mediado pela representação.
É como a própria experiência retratada: nada mais íntimo que gestar uma vida em si; e nada mais alienado da própria auto-consciência. Disparada a concepção da vida, ela se desenvolve ao mesmo tempo dentro e à revelia da mulher. A fala mais irônica do filme trata disto: o marido chega do trabalho e pergunta: “o que você fez hoje?” para a mulher que leva uma gestação de risco e está reclusa; ela responde algo como: “fiz um olho, talvez um cílio. Terminei o fígado, deu muito trabalho”.
É esta auto-consciência, esta identidade que mais sofre. Até então soberana, ela é atropelada pelo mais primitivo acontecimento da vida. Perde-se então o presente e boa parte dos sonhos de futuro, conforme se amplia a compreensão do compromisso que se estabelece com a nova vida.
Em ‘Elena’, o acontecimento crucial e traumático se deu há anos e o enigma gerado por ele custa anos de elaboração, investigação e só passa a ser resolvido quando não se repete, como destino, sobre a irmã mais nova. Em ‘Olmo e a gaivota’, o trauma está em curso; tudo é estranho, desestruturante, novo, intenso. Memórias antigas e mesmo um antigo namorado são evocados quase que desesperadamente, como forma de tentar reter a identidade que está sendo perdida. E surge a expressão forjada em ‘Elena’: memória inconsolável.
O marido e o casamento como um todo se tornam ao mesmo tempo o lugar seguro em que é preciso se apoiar, mas também objetos de um ódio sincero e ressentido: atribui-se a eles a culpa por tudo que se está perdendo.
Cada mulher vive singularmente cada etapa do processo. Para algumas, a gravidez é deliciosa e realizadora, sobretudo quando a gravidez foi desejada por muito tempo e houve dificuldade em sua realização; para outras, a gravidez é um pesadelo. Para algumas, o nascimento e a amamentação são vividas como uma benção, para outras, predomina o sentimento de “ter sido sequestrada” pelo bebê. Mas os montantes de afeto mobilizados são sempre gigantescos e todos em torno enlouquecem também.
O percurso singular da atriz nos conduz a uma experiência de morte. O filme se encerra no umbral do corte de identidade seguinte e não se estende à experiência da maternidade. Mas quem esteve por lá sabe que os acontecimentos se precipitam numa tal velocidade, as demandas se apresentam num fluxo tão contínuo, que justamente não dá tempo de fazer memória. Talvez deste temor de não conseguir guardar as experiências na memória venha a loucura de registros em foto, video, etc. O próximo acontecimento, em sua premência, solapa o anterior.
Aí sim, pode se imaginar que o período da gravidez possa permanecer cindido da experiência futura, não integrado à história daquela família e se torne (então e por um tempo incalculável) uma memória reprimida e inconsolável.
Ah, sim: a presença de Olivia Corsini na tela é hipnótica.