Crônica de uma cidade desaparecida

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Era uma vez uma tília. Debaixo dela cresciam flores e as crianças brincavam de pega pega, chicote queimado e pulavam amarelinha. Os adultos arrumavam as cadeiras, contavam histórias e recordavam histórias dos velhos, agora, como diria o poeta, duas vezes histórias. As pessoas conversavam e mantinham viva a crônica da rua e da cidade.

Depois a prefeitura determinou o alargamento da rua e a tília foi cortada. As incorporadoras fizeram ofertas irresistíveis e várias casas e sobrados foram vendidos. Prédios foram levantados e o comércio foi tomando conta da rua. As calçadas foram ficando cada vez mais desertas e, tomados pelo medo, os moradores começaram a erguer muros.

As crianças já não brincavam mais, os adultos não atualizavam mais as conversas e os namorados deixaram de se encontrar no banco da praça. Agora todos preferiam ficar dentro de suas casas vendo televisão. A rua foi se desertificando ainda mais, os assaltos aumentaram, os muros receberam cacos de vidro e depois cercas elétricas.

O cinema da praça virou igreja, o terreno baldio onde as crianças brincavam agora é um estacionamento e a vendinha onde se comprava guloseimas cedeu lugar a uma boca de fumo. As lojas de rua também desapareceram e surgiram as galerias. Mais tarde estas foram abandonadas, como a pracinha, o cinema de rua e a própria rua. E todo mundo se escondeu dentro do shopping center.

As pessoas trocaram o passeio a pé pelo carro. Depois veio o vidro fumê e o carro blindado. O centro foi esquecido e quem pode se escondeu nos subúrbios, nos alphavilles 82, nos condomínios fechados, nas chácaras distantes onde às vezes só é possível chegar de helicóptero.

E assim, a cidade, uma das maiores invenções humanas, retrocedeu. E todos se encastelaram. A diferença é que antes, o senhor podia se posicionar no alto da torre do castelo e identificar o inimigo. Agora ele vem disfarçado de agente de segurança, de prestador de serviço telefônico, de entregador de fast food, de amigo que descobrimos numa sala de bate-papo na internet. E junto com o serviço e a amizade, ele traz o medo.

Temos medo de ser assaltados, medo de sermos sequestrados, medo de sermos enganados, medo de circular no shopping center. Exatamente agora que a cidade de São Paulo inaugura o seu 76.o shopping center, temos medo dos anunciados rolezinhos.

Que neste 25 de janeiro do ano da graça de Nosso Senhor de 2014, a cidade de São Paulo comemore o seu 460.o aniversário indo para a rua, fugindo dos bunkers que ela criou. Deixando a televisão, a internet e os celulares sozinhos e encontrando o olhar das pessoas que ainda respiram, conversam, cantam e circulam pela cidade.

Para ler outros textos do Professor Veronese, acesse blog CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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