Coringa e a glória do ressentimento

Pedro de Santi

“I have a condition”, “Tenho uma condição”. Assim se justifica Arthur ante as pessoas quando se vê atravessado por uma risada inadequada e incontrolável. Algo nele se impõe, sem que possa controlar. Disto, derivam muitas das cenas de bulling e agressão. Esta impossibilidade de se sentir sujeito da própria vida, de sentir ser alguém que realmente exista perpassa aquele que irá encontrar uma identidade como o Coringa.
Foi lançado o aguardado filme, dirigido por Todd Phillips. Todos os comentários que o antecederam davam conta de uma atuação estupenda de Joaquim Phoenix. De fato, o centro do filme é sua atuação visceral. Suas expressões, facial e corporal, são incríveis. Seu corpo, ora dança com extrema leveza, ora se contorce como se os ossos estivessem todos quebrados e fora do lugar.
O filme funciona muito bem, mas, para um psicanalista, o que se destaca são as dimensões subjetivas da personagem. Encontramos uma composição de características de uma psicose e uma dinâmica de relações pessoais e sociais extremamente rude e violenta, como denuncia o protagonista. A caracterização de Phoenix da experiência psicótica é verossímil, mas o filme corre o risco de simplificar a dimensão psicológica para tentar justificar sua condição: abandono, abuso, relação fusional e mortífiera com a mãe, o enigma sobre o pai ausente.
A cisão estabelecida entre as suas risadas e a tragicidade de sua situação é um dos pontos mais agoniantes do filme: sofremos com ele ao vê-lo tentar se conter quando cria problemas de dimensões variadas. Ao dizer que aquelas risadas são uma condição, ele expressa sua dimensão de sintoma, algo que parece irracional e incontrolável ao sujeito, que o envergonha e perturba a imagem identitária que gostaria de sustentar. O sintoma remete a outra dimensão da pessoa, inconsciente a ela mesma e, no entanto, portadora de uma intencionalidade e um sentido que se expressa de forma disruptiva, estragando a pintura do Eu. E que o sintoma seja rir- aparentando uma felicidade na aparência que torna invisível aos outros (e à própria mãe) o que realmente sente- faz com que o Arthur manifeste um sintoma social, em tempos de tecnologia da felicidade.
O filme é pleno de cisões; cisão da personagem consigo, assim como cisão social entre o que a voz das pessoas reclama e o que o poder instituído ignora, ocupado com sua própria agenda. A falta de comunicação e reconhecimento, a forma rude como as pessoas se tratam, as mentiras e indiferenças entre uns e outros: tudo isto compõe o quadro vivido pelo Coringa.
No filme, evoca-se um mito clássico: o palhaço que ri no desenho de sua máscara enquanto, no fundo, chora e sofre, como na opera Pagliacci (1892) de Leoncavallo, ou em tantas cenas de Charles Chaplin. Nesta direção, a presença de Robert de Niro como um apresentador de tv que serve como escada para a história é emblemática e irônica. O humorista perdedor e fracassado, ressentido e pronto a transgredir para ter sua oportunidade de ter visibilidade remete a um filme clássico em que ele atuou, sob a direção de Scorcese, O rei da comédia (1982).
No aspecto de ressentimento e vitimização ante um mundo violento, como forma de justificar sua violência, reside talvez o ponto fraco do filme. O ponto forte, por sua vez, é a emancipação que acaba acontecendo, de modo em que ele transcende sua condição anterior e passa a parecer livre e anárquico.
É então que aparece um sentido de potência e leveza. Aquele que passava a vida invisível como palhaço, como cidadão ou dependente do serviço público precário finalmente conquista reconhecimento, rompe com sua condição oprimida e passa a ser visto e amado.
Movimento ambivalente: de um lado, finalmente ele passa a existir, ainda que seja no lugar de destruidor; de outro, Artur sucumbe definitivamente sob a personagem do Coringa, que se impõe em glória.
O filme alça o Coringa a um símbolo de uma insatisfação geral, de chute no balde das pessoas que se cansam de jogar o jogo social e partem para desordem. Então ele se torna o vilão herói, com o qual nos identificamos. Algumas cenas evocam em muito nossas manifestações de 2013. Naquele momento, nenhuma bandeira partidária era ostentada, mas se difundiu a máscara de outro Joker: o V de vingança.
O filme gerou também críticas e preocupações. Uma delas: a de que sirva como justificativa para aqueles atiradores que invadem escolas, matam muitos e se matam ao final. Outra delas: a de que o Coringa se transforme num líder e numa estética da violência, que vaze para o ambiente real. Foi o que aconteceu, para a tristeza de seus diretores, com filmes como A laranja mecânica (1971), de Kubrick, Clube da luta (1999), de Fincher ou Tropa de elite (2007), de Padilha.
A violência estancada e produzida por frustração, ressentimento e cansaço com a ordem geral pode explodir nas ruas. Mas pode acontecer coisa pior: ela pode chegar ao poder pelo voto, como demanda popular.

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