Pedro de Santi
Na semana passada, foi publicado o relatório na Comissão Nacional da Verdade. Neste mês, já vínhamos acompanhando a divulgação vergonhosa das técnicas de tortura utilizadas pelo exército americano contra terroristas reais ou supostos (especialmente sob o governo de George W. Bush). Acompanhamos também um grupo, pequeno mas ruidoso, clamando pela volta do regime militar no Brasil.
O relatório é o resultado de um trabalho de anos a respeito do período da ditadura militar no
Brasil. Ele feito liderado por um grupo de seis pessoas de altíssimo nível intelectual e ético: Paulo Sérgio Pinheiro e a psicanalista Maria Rita Kehl, para citar dois dos nomes de muito valor.
Ele é muito importante e oportuno, portanto. Para alguns de nós, trata-se de um trabalho de memória: estivemos lá, ainda que sem a noção completa do que ocorria. Mas boa parte dos nossos alunos nasceu nos anos 90 e só conheceu 3 presidentes, todos eleitos e re-eleitos democraticamente. Quando vimos a batalha odiosa de militantes do PT e do PSDB, considerando que a vitória do adversário seria um terror e o mundo acabaria, sempre é importante relembrar que esta batalha se dá num campo democrático e que há realidades extremamente piores que a eleição de um dos partidos.
O trabalho com esta população jovem não é dar sentido a uma memória, mas sim contar a história recente do país, contextualizando o presente. Para eles, o período da ditadura é algo Pré-histórico.
Ainda que alguns reclamem da unilateralidade dos trabalhos da comissão, reabre-se a discussão e a possibilidade de outras versões e vieses, também necessários.
Uma ditadura pode parecer tentadora àqueles que se cansam da necessidade constante de conviver e negociar com quem pense e queira coisas diferente; ou de quem veja seus candidatos ou partidos derrotados em eleições. Então vem a vontade de que minhas posições, que tomo como absolutamente verdadeiras se imponham, para o que presumo ser o “bem comum”. E é claro que nesta fantasia infantil e onipotente, sempre achamos que a ditadura será exercida segundo nossos critérios. A história mostra que as ditaduras que se instalam, mesmo com apoio popular, acabam por disparar mecanismos intrínsecos de violência, que fogem completamente do controle dos idealizadores. Nossa potência encontra limites na potência dos outros. Num regime no qual só um tenha poder- qualquer um- abre-se o terreno para o exercício sádico e arbitrário dele. A complicadíssima e imperfeita democracia é ainda o melhor antídoto contra isto: o poder de um só.
Muitos reclamam que a Comissão não cumpriu sua missão integralmente, por só ter atentado para a violência de Estado. É verdade que é preciso do quadro completo, mas é preciso dizer que a violência de Estado é pior e mais importante de ser apontada, denunciada e evitada. Quando o Estado é violento, desestrutura-se todo o tecido social e condição de ter uma mínima confiança no mundo ao redor.
Em plena ditadura, Chico Buarque criou um pseudônimo para driblar a censura sistemática que sofria: Julinho da Adelaide, que em “Acorda amor”, pedia socorro ao ladrão, ao se ver perseguido pela “dura”, numa escura viatura.
A Comissão da Verdade reabriu uma discussão que foi evitada, no Brasil. Para a redemocratização gradual, convencionou-se nos anos 80 não ir a fundo na investigação dos crimes cometidos nos 30 anos de ditadura. No máximo, tivemos um famoso e dramático relatório chamado “Tortura Nunca Mais”. Em países vizinhos, a situação foi diferente. Ainda hoje, a presidente que sofreu tortura durante a ditadura se vê no dever de receber com discrição o relatório, para evitar confrontos.
Uma breve história para comparar como foi conduzido o processo no Brasil e num país vizinho. Em 1986, quando cursava o quarto ano de Psicologia, participei de um grupo de estudantes da PUC e da USP que se organizou para conhecer os psicanalistas que trabalhavam com as “Mães da Praça de Maio”, em Buenos Aires. Naquele momento, acabava a ditadura argentina e havia um forte processo de levantamento e julgamento dos excessos cometidos. Os parentes de desaparecidos faziam regularmente uma “ronda” na praça em frente à Casa rosada, sede do poder executivo, levando placas e fotos com seus nomes e pedindo por seu retorno. No mínimo, pedindo informações sobre seu paradeiro.
Na sede da instituição, psicanalistas trabalhavam uma questão dramática de sofrimento: o luto impossível.
Algumas pessoas haviam desaparecido há anos e tudo levava a crer que estivessem mortas. Mas sem um corpo para velar ou informações confiáveis, persistia a esperança de que eles pudessem estar vivos. Com o passar do tempo e a ausência longa, no entanto, um inevitável trabalho de luto começava ser operado nos parentes, o que gerava um forte sentimento de culpa: “Como posso estar me despedindo internamente se ele pode ainda estar vivo e precisando de socorro”.
Quando nos vimos ante um grupo de psicanalistas que nos recepcionou, eles nos propuseram a seguinte questão de ética profissional: Como agiríamos caso recebêssemos em nosso consultório particular uma pessoa que contasse, entre outras coisas, ter sido um torturador? Três alternativas foram sugeridas: tratar esta fala como qualquer outro conteúdo, como uma realidade interna ao paciente a ser trabalhada em análise; encaminhar o paciente, caso esta informação nos gerasse um repúdio tal que não tivéssemos condição de atendê-lo; denunciar o paciente à polícia. Esta seria uma situação limite, daquelas que colocam em questão profundamente como entendemos nosso trabalho e nosso compromisso ético. Estas situações são raras, mas são as mais preciosas para que a gente se ponha à prova e se conheça. Naquele momento, a escolha dos argentinos era pela denúncia do paciente que se dissera ex-torturador: o compromisso social deveria ser sobreposto à ética profissional do sigilo no consultório de psicologia.
E é aqui que está o ponto de contato desta história com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Na Argentina, houve uma reação social e jurídica imediata, com o julgamento daqueles identificados como criminosos durante a ditadura. No Brasil, para o bem e para o mal e por uma série de motivos, evitamos o confronto direto com esta história. Não houve julgamentos, mas uma lei da anistia. Assim, literal e figurativamente, temos esqueletos no armário nunca exumados, um momento de terror nunca devidamente compreendido e reparado. No princípio básico da psicanálise: pode-se calar sobre algo, mas este algo segue vivo e potente e acaba por se expressar “apesar de nós”.
Quando se toca neste assunto, 30 anos depois, isto ainda gera apreensão. Mas as passeatas golpistas na Avenida Paulista evocando a volta dos militares mostra a urgência da evocação e divulgação e elaboração desta história.