Pedro de Santi
Na grande safra de filmes que concorreram ao Oscar estava Boyhood, de Richard Linklater.
O nome ‘Boyhood’ parece ser uma variação de ‘childhood’, infância. Mas, em minha leitura do filme, também poderia ser uma variação de ‘brotherhood’, irmandade. Aqui, Boyhood seria um coletivo de meninos.
O filme foi rodado por 12 anos, acompanhando Mason dos 6 aos 18 anos. Como um dos propósitos é o registro da passagem do tempo e as mudanças impressas por ela, foi uma aposta bastante ousada contar com a participação da equipe de atores ao longo de tanto tempo. Lidamos com a consciência e registro da transitoriedade das coisas, ao lado de uma razoável confiança na estabilidade delas.
Temos, assim, uma oportunidade rara de ver o crescimento/envelhecimento de um grupo de personagens. Quem acompanha o trabalho do diretor, sabe que isto é um interesse seu. Ele é o diretor da (até aqui) trilogia, “Antes do amanhecer” (1995), antes do por do sol” (2004) e “Antes da meia-noite” (2013). Nesta série, acompanhamos um casal, em cortes de 9 anos. Passamos do primeiro encontro, passageiro, ao encontro que constitui o casal, chegando a um casal já desgastado. É uma experiência dura e realista. Da série e da proposta, o diretor também manteve o um ator em Boyhood, Ethan Hawke.
Vendo e revendo Boyhood, passei a considerar que a expressão se referia não só ao menino, mas também ao seu pai e a relação que estabelece com seus filhos. O filme mostra a luta constante de uma mulher que exerce sozinha as funções materna e paterna ante seus dois filhos. É ela que está no embate do dia a dia; cria, cuida, educa, limita, serve como modelo, etc. O papel valeu um Oscar de atriz co-adjuvante a Patricia Arquette.
O pai é ausente, não ajuda nem financeiramente e se comporta como um meninão. Quando aparece, se comporta como um “tio”: leva os filhos para se divertir e não tem a menor conexão com a vida cotidiana deles.
Em parte, temos aquele quadro típico dos pais separados no qual, por culpa, o pai distante procura compensar sua ausência cedendo a todos os desejos dos filhos. Mas neste caso, trata-se de um grau a mais. Mais que ausente, o pai se coloca numa posição de igual para igual com os filhos: quer ser seu amigo, busca a cumplicidade deles contra a mãe, troca confidências. O filme indica que ele não desejou ser pai e se manteve no lugar de moleque.
Os filhos, em especial, Mason, querem sempre saber dele, tem esperanças na recomposição do casal e ficam eufóricos com suas raras visitas. Todos conhecemos esta experiência básica de injustiça afetiva: a mãe sempre presente não é valorizada, e ainda paga o preço de ser aquela que diz ‘não’; o pai ausente é recebido com grande alegria, alívio e esperança.
A mãe cumpre sua função com aquela exaustão inevitável na situação e na luta característica por construir uma vida própria, com sua carreira e novos relacionamentos. Quando os filhos entram na faculdade, sua atitude é ambivalente. Ela se ressente que ficar para trás mas, mais do que depressa, troca a casa da família por outra muito menor. Assim ela garante um rendimento melhor e evita a possibilidade de volta dos filhos.
Neste mesmo momento, o pai parece se encontrar numa nova família. Ele tem um novo filho num ambiente extremamente conservador e acolhedor, onde, aparentemente, consegue se estabilizar. E então aparece o ressentimento da primeira família: ele dará a este filho tardio a presença da qual a privou.
É patética a cena em que, numa festa com a presença de todos, o pai se aproxima para, pela premeira vez, agradecer a ela o fato de ter criado os filhos sozinha. Então ele se oferece para ajudar a pagar ao menos esta festa, para então abrir a carteira vazia e “dar um perdido”. As expressões de Arquette em 30 segundos já valem o Oscar.
Há uma história não contada sobre este casal: sua constituição, o nascimento dos filhos, sua ruptura e a exclusão do pai da vida cotidiana dos filhos. Uma grande tensão se desfaz para todos, assim que os filhos ganham vida própria.
Ao final do filme, há duas cenas preciosas. Numa delas, a mãe acompanha o filho até a residência universitária que ele vai ocupar. Ela então desaba em lágrimas e diz que aquele é o pior dia de sua vida, uma vez que ela acabava de se dar contar de que sua vida fora uma série de marcos históricos relativamente comuns e que o próximo passo seria seu funeral. O filho tenta consolá-la, mas ela diz que, afinal, ela esperava ‘mais’ da vida. Na sequência final, Mason está com novos amigos e uma paquera promissora e faz um belo elogio ao ‘momento’, ao presente que sempre se impõe e transforma.
As cenas são as duas faces da transitoriedade: o cair em si sobre nossa desimportância e fugacidade; e o convite ao desfrute dos encontros contingentes que, por isto mesmo e só por isto, são especiais.