Por Cristina Helena Pinto de Mello
Nos cursos de Introdução à Economia apresentamos a diferença entre ciência normativa e ciência positiva. A abordagem econômica que observa e discute os fenômenos observados pertence ao campo da ciência positiva enquanto a análise do que deveria ser que envolve julgamentos com valoração pertence ao campo da ciência normativa. Portanto, no campo das ciências econômicas essa questão pode ser analisada em relação à forma como foi estruturada e em relação ao que seria uma escolha ótima.
A questão da Bolsa Estupro nos coloca diante de dilemas morais que não pertencem ao campo científico da economia pura e sobre os quais não vou me manifestar. Portanto, livre dos dilemas morais que como pessoa a economista que mora em mim tem, quero morrer de catapora com essa história de bolsa estupro!
Para nós, economistas, as escolhas são pessoais, intransferíveis e não as julgamos moralmente. Entendemos que as escolhas são racionais e que buscamos sempre o máximo de satisfação como resultado de nossas opções.
Por definição o estupro não está relacionado com escolha. É sexo não consentido! Mas, a gestação é escolha. Portanto, deveria ser um direito inalienável escolher a gestação ou o aborto caso não fira direitos de outrem. A ideia de pagar a bolsa estupro só faz sentido econômico se pensarmos que interromper a gestação resultante do ato de violência fere os direitos do não nascido.
Economistas trabalham com a premissa de racionalidade, de que as pessoas reagem a incentivos e de que fazemos escolhas. Considerando estas premissas podemos dizer que no caso do estupro, não estão envolvidos dilemas como a escolha por interromper a gestação ligada a fatores econômicos, como não ter recursos financeiros para sustentar-se no período gestacional e a criação de uma criança. Portanto, a bolsa estupro não serve como incentivo ou como pagamento pelo custo de oportunidade de ter a gestação em lugar do aborto.
Seria correto dizer que devemos dispensar um tratamento igualitário entre os cidadãos e cidadãs desta sociedade? Se sim, como faremos no caso daquelas mulheres que não foram vítimas de estupro e que, recebendo um auxílio do Estado, gostariam de manter a gestação? Elas não teriam direito a uma bolsa?
É dever do Estado oferecer segurança! Para isto, cobramos impostos daqueles que possuem remuneração, ganhos ou patrimônio. Os impostos são cobrados de todos, mesmo os que não possuem ocupação com remuneração. Assim, todas as despesas do Estado não são financiadas por uma fábrica de dinheiro como a Casa da Moeda. Alguém trabalhou, produziu, comprou ou possui patrimônio para pagar tributos. Então, se nossos tributos não são utilizados para defender as mulheres do estupro, devem estes ser utilizados para incentivar as mulheres a não abortar? Seria essa a motivação para o aborto? Se for assim, não deveríamos dar a mesma opção às mulheres de baixa renda?
Engravidar é uma escolha. Mas, e nos casos em que mesmo utilizando mecanismos contraceptivos a mulher engravida? Ela tem uma gestação não desejada e não terá o benefício da bolsa sob qual alegação? E se a gravidez involuntária estiver associada a uma falha de fiscalização do Estado e o mecanismo contraceptivo apresentar defeito? Essa mulher também teria direito ao benefício? Nos casos de estupro como fazer para identificar o agressor? E como identificar simulações de estupro para obter o benefício?
Estas questões estão associadas ao que chamamos de risco moral. O conceito de risco moral descreve um fenômeno no qual definimos uma regra econômica em função de um comportamento e, após a definição da regra há possibilidade de mudança de escolha do individuo em função das novas regras. Por exemplo, quando fazemos o calculo do valor monetário de um seguro, usamos um calculo de probabilidade associada a eventos passados para estimar o risco envolvido neste negócio. Os eventos passados descrevem uma situação em que o individuo não possuía seguro. Após a contratação, a pessoa pode se sentir mais segura e se expor mais a riscos. Desta forma, o cálculo subestima o risco envolvido. Como o risco moral pode estar envolvido nesta situação? Bem, é possível que alguém pense em falsear a agressão para obter o benefício! E se todas as mulheres a partir deste momento solicitarem o benefício alegando terem sido vitimas de estupro?
Se a ideia não é induzir a vítima a escolher a gestação com incentivos monetários, mas será que é de indenizá-las pela falha do Estado em oferecer segurança? Se a bolsa não tem a finalidade de “induzir” a escolha pela gestação, por que homens vítimas de estupro não terão direito à mesma indenização?
Há uma área da teoria econômica que analisa as escolhas públicas. A teoria da escolha social pertence ao campo das ciências normativas e discute quais seriam as escolhas ótimas que o Estado deveria fazer para maximizar uma função de bem estar social. A teoria da escolha pública pertence ao campo das ciências positivas e descreve a forma como as escolhas são feitas identificando regularidades, processos, leis gerais de comportamento e imperfeições de mercado como acesso à informação, problemas de agente-principal, etc. A teoria da escolha pública procura explicar por que muitas vezes as escolhas do Governo não são aquelas que maximizariam o bem estar da sociedade. Regras como de logrolling – negociação de votos como estratégia política para obtenção de votos na aprovação de um projeto – podem explicar por que o legislativo aprova novas regras que representam custo para a sociedade que nem sempre maximizam o bem estar social. Outra questão está relacionada à operacionalização da regra e os custos envolvidos.
Se a bolsa tem a intenção de subsidiar a gestação e a criação daqueles que não nasceram para lhes garantir o direito à vida, não deveríamos também garantir os mesmos direitos às demais promessas de cidadãos brasileiros? Estes nascituros são igualmente vitimas potenciais, mas de sexo consentido ou de falhas nos mecanismos contraceptivos.
Considerando a ideia de contrato social justo, aquele que no estado natural as pessoas não sabem se vão ou não vão ser estupradas e, portanto, você e eu somos vítimas potenciais, devemos pensar se é justo cobrar mais impostos da sociedade ou deixar de gastar com saúde, educação (vamos lembrar o déficit de creches? Vamos lembrar as deficiências da educação pública? Vamos lembrar-nos dos problemas na área da saúde?), transporte, SEGURANÇA e outros bens públicos e/ou semi-públicos para realizar a despesa com a bolsa? Será que no seu conjunto a sociedade concorda em pagar mais impostos ou abrir mão da despesa para financiar a gestante involuntária em seu estado natural? É justo com os pequenos brasileiros que não tem direito à creche, saneamento e demais serviços essenciais gastar dinheiro com o bolsa estupro em lugar de oferecer direitos garantidos constitucionalmente aos já nascidos?
O nascituro está no que John Rawls chamou de situação original. Ele não tem informações sobre a vida que terá ao nascer. Imagine-se nesta situação. Qual seria a escolha justa? Criar um filho é apenas uma questão econômica? Como obrigar esta mãe, já atada a uma gravidez compulsória, a zelar, amar, educar, orientar este filho? O que estamos exatamente esperando como resultado?
Como última faceta deste olhar econômico sobre a bolsa estupro, a proposta de pagamento de um salário mínimo às vítimas não as discrimina em ricas ou pobres. O benefício pago às mulheres ricas terá impacto econômico diferente do benefício pago às mulheres pobres seja em função de suas propensões marginais a consumir e o consequente multiplicador keynesiano, seja em função dos diferentes papeis que filhos representam em famílias com diferença de renda. Nas famílias mais ricas, filhos são fontes de gastos crescentes enquanto nas famílias mais pobres os filhos constituem alternativa e fonte de renda. Olhando por este ângulo, a bolsa estupro quando for paga a mulheres ricas é um mal uso do recurso público pois não tem efeito multiplicador da renda e gerador de empregos significativo e para mulheres pobres pode ampliar o risco moral.
Em resumo, a bolsa estupro não serve como incentivo ou como pagamento pelo custo de oportunidade de ter a gestação em lugar do aborto e fere direitos constitucionais e universais, não dispensa tratamento igualitário aos nascituros vitimas potenciais do aborto, discrimina gênero, injustiça mulheres pobres sem condições de arcar financeiramente com a gestação, onera a sociedade como um todo com aumentos de impostos ou escolhas que retiram recursos da saúde, educação, habitação, ou outro para arcar com as despesas da bolsa estupro, adiciona aos custos da bolsa despesas com a burocracia, não gera emprego ou aumenta o PIB e trás consigo um risco moral. Do ponto de vista econômico a bolsa estupro é uma escolha irracional. Donde concluo que se aprovado, sua regulamentação deve prever o benefício igualitário e democrático a todos os nascituros (resultado ou não de agressões sexuais), a todas as mulheres para quem a continuidade da gestação depende de questões financeiras e para os cidadãos do sexo masculino vítimas de estupro! E não me perguntem quem vai pagar por isso. A resposta é óbvia.