Big Data. Algumas considerações de um professor de Ciências Humanas, II. A quem pertencem os dados?

Pedro de Santi

Dentro do contexto do Módulo internacional Mestrado Profissional, em Comportamento de Consumo (MPCC) da ESPM, em Janeiro de 2018, proponho trazer minha contribuição como profissional da área de Ciências Humanas; mais especificamente de psicologia e filosofia. Toda a discussão sobre Big Data é cheia de possibilidades para o estudo do comportamento de indivíduos e grupos; da mesma maneira, há pressupostos filosóficos, éticos e epistemológicos que parecem passar despercebidos por boa parte dos excelentes profissionais que pudemos acompanhar em nossa visita.
Ante o poder e uso crescente das informações nos mais variados contextos, uma questão ética se impõe: a quem pertencem os dados? Estão aqui envolvidas questões importantes e delicadas como propriedade e privacidade.
Ao longo da viagem, pareceu claro que há uma diferença importante no tratamento da privacidade entre a Europa e os Estados Unidos. Na Europa, há uma preocupação muito grande em os dados sejam tratados como movimentações demográficas, com a preservação de dados pessoais. Mas, mais de um dos palestristas deu a entender que não seria difícil identificar um indivíduo com o cruzamento de duas bases de dados.
Assim, mesmo com cuidado sobre a privacidade em âmbito sistêmico, os dados individuais podem, sem grande dificuldade, estar a serviço do Estado ou do Mercado.
É provável que a maior parte das pessoas sequer se dê conta de que está produzindo dados a cada instante. Não só ao usar um cartão de débito ou crédito, como é mais fácil perceber, mas, sobretudo ao portar um celular, mesmo desligado. Ao usar bilhetes de transporte, ao se deslocar de automóvel, escolher a programação nos serviços de streaming; tudo é digitalizado. Este excesso de monitoramento gera um sentimento ambíguo, de proteção e persecutoriedade. É bom saber que é, em caso de sequestro, cada vez mais provável que alguém possa ser localizado; mas é assustador se dar conta de que cada movimento nosso pode ser identificado. Uma das visitas mais impressionantes que fizemos foi a uma sede da NEC, em Londres, onde pudemos ver o quanto a tecnologia de reconhecimento de face está sofisticada. Da persecutoriedade à paranoia, é um pulo: começa-se a suspeitar que as câmeras de nossos celulares e de nossas smart-tvs captam nossas imagens e conversas sem nosso consentimento e, mesmo, desligados.
O prefixo ‘smart’ e expressões como ‘inteligência artificial’ e ‘machine learning’ ativam as promessas e temores sobre o domínio das máquinas sobre os homens nos anos 60 e 90. Podemos evocar filmes, como 2001. Uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick ou AI (2001) e Minority Report (2002), de Steven Spielberg.
Voltemos à questão anterior: a quem pertencem os dados, afinal? De uma perspectiva individual, parece claro que os dados pertencem às pessoas de quem eles foram extraídos, que deveriam ser consultadas e poder autorizar ou não sua utilização. Mas, de acordo com meu texto anterior a respeito (no dia 19 de fevereiro), os dados não são a realidade, e sim uma extração dela operada por um técnica e metodologia. Em outros termos, os dados são um produto e quem os produziu teria sua propriedade. Um dos colegas do Módulo levantou a questão: como e por quê uma empresa investiria pesadamente na produção de uma base de dados se ela não puder ter controle sobre ela?
Há quem proponha que a posse dos dados seja tratada como uma sociedade entre os indivíduos e aqueles que os produzem e tratam, de modo que as pessoas pudessem ser remuneradas por disponibilizar-se a prestar dados.
Numa vertente mais radical, tivemos uma palestra com Katelyn Rogers, representante da Open Knowledge Foundation. Como o nome indica, trata-se de uma ação internacional em favor de que todos possam ter amplo acesso à maior quantidade possível de dados. De uma perspectiva de produção de conhecimento, isto traria um ganho enorme com relação à confiabilidade de qualquer pesquisa, uma vez que todos poderiam ter acesso à totalidade dos dados envolvidos.
O conceito de dados abertos seria também uma medida democrática, que visa impedir um dos maiores riscos da privatização dos dados: A criação e manutenção de uma elite de nações e empresas detentoras das informações e conhecimento, num hiato cada vez maior com aqueles que não têm o mesmo acesso.
Para concluir esta sessão, vale a pena observar que, progressivamente, as pessoas ganham consciência sobre o mecanismo envolvido no mundo digital. Há apenas 4 anos, em 2014, as pessoas vociferavam contra tentativas do governo norte-americano regular o fluxo da internet, em nome do combate à pirataria. Os projetos se chamavam Stop Online Piracy Act (ato pare com a pirataria on-line), conhecido como Sopa, e Protect IP Act (ato para proteção da propriedade intelectual), chamado de Pipa. O curioso é que as pessoas defendiam que a internet deveria “permanecer livre”, quando ela nunca foi, de fato. Desde sua origem, a rede é mediada por empresas e marcas que fazem usos comerciais dos dados que circulam. Estes dados são também manipulados e censurados, como todo usuário do Facebook já sabe. Hoje, já é comum que as pessoas falem sobre os algoritmos- ainda que não saibam exatamente o que o termo significa- que fazem com que elas tenham recomendações de mais do mesmo no NETFLIX, ou que só vejam posts das mesmas pessoas nas redes sociais.
Como no fim da sessão anterior, podemos esperar que as pessoas ganhem maior conhecimento sobre como funciona o mundo digital e, com isto, algum contra-controle.

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