Balada com os mortos

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Na madrugada de 13 para 14 de setembro o cemitério da Consolação sediou a oitava edição do Cinetério, uma exibição de filmes de terror promovida pela Prefeitura de São Paulo com o apoio da Galeria Olido e da Cinemateca Brasileira. Nos anos anteriores o evento acontecera em cemitérios da periferia e não houve manifestações contra. Mas no cemitério da Consolação estão enterradas pessoas das mais tradicionais famílias paulistanas e muitos famosos. Daí a chiadeira dos protestos contra a exibição dos filmes.

A Prefeitura, na voz da sua secretária de eventos, explicou-se que “a ideia não era ofender”, mas ocupar o cemitério, levar a população para lá, povoá-lo com os vivos, para diminuir a estatística dos “459 itens” furtados ali no último ano.

Para o evento foram selecionados três filmes de terror: “Ninfas Diabólicas”, “Excitação” e “As Sete Vampiras”. Diante das objeções dos familiares de alguns mortos, a Secretaria Municipal de Cultura rebateu que esse tipo de intervenção já ocorre em outras cidades, como Buenos Aires.

A justificativa é simplória. Filmes de terror, ou de qualquer outro gênero – e como qualquer obra de arte -, não são neutros. Veiculam mensagens e são construídos segundo uma poética que envolve valoração de gosto estético. Por outro lado, cemitério é um lugar muito especial. Podemos não ter nenhuma crença, mas é difícil permanecermos indiferentes num lugar onde estão guardados os restos mortais de seres que um dia pisaram sobre a terra. (Remeto o leitor ao filme SACRO GRA, de Gianfranco Rosi, obra-prima comparável a TEOREMA, de Pasolini).

Sou ateu e não tenho nenhum parente sepultado no cemitério da Consolação. Mas penso em figuras públicas, como Tarsila do Amaral, ali sepultada. Tarsila, que amava o rosa, o azul, o verde grama, o amarelo canário e que pintou a festa de um Brasil caipira e autêntico, encheu de luz tropical a Torre Eiffel e nos ofereceu aquelas frutas que são uma gostosura de cores. Gosto se discute, sim, e Tarsila provavelmente não acharia graça nenhuma desses três filmes trashs, os dois primeiros produzidos na Boca do Lixo.

Mário de Andrade, que também está no Consolação, escreveu em “Quando eu morrer…” : “As tripas atirem por aí/Que o espírito será de Deus/E adeus”. Apesar de sua macunaímica irreverência, era um homem obcecado pelo refinamento estético e acho que também não gostaria de nenhum desses filmes ditos “B” – quiçá “C” ou “D”- projetados sobre seu túmulo.

Esses artistas não estão mais aqui para protestarem contra o evento. Morte, espiritualidade, religiosidade, transcendência não são quantificáveis e também não podem ser racionalizados. Por isso devem ser, antes de tudo, respeitados. Diante disso, o gesto da Prefeitura de São Paulo, da Galeria Olido e da Cinemateca Brasileira é um gesto autoritário e desrespeitoso. Os realizadores do evento, malgrado seus currículos e possíveis títulos acadêmicos, que, imaginamos, os levaram a ocupar seus respectivos cargos públicos, carecem de noções básicas de antropologia, a qual nos ensina que cada cultura lida de um modo diferente com a morte.

Combate a vandalismo pode ser feito com outras medidas, como a não desertificação do centro da cidade e a ocupação dos espaços públicos com políticas que integrem a população. Quanto ao argumento de que eventos semelhantes são realizados em outras cidades, pergunto aos realizadores da Noite do Terror: os senhores já pensaram em apresentar tal ideia, por exemplo, à Prefeitura de Paris? Será que os parisienses aprovariam a exibição de “Ninfas Diabólicas” ou “Excitação” no primeiro corredor do Montparnasse, entre os túmulos de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Marguerite Duras? E a prefeitura de Genebra, realizaria a performance entre as lápides de Jean-Jacques Rousseau, Jorge Luis Borges e do brasileiro Sérgio Vieira de Mello?

Há as eleições, o rombo da Petrobrás, a ascensão dos radicais do Estado Islâmico, o conflito na Síria, as justificativas esfarrapadas de Obama sobre as últimas intervenções no Iraque. Questões mais importantes, poderão objetar alguns, do que se preocupar com uma balada no cemitério. Mas é muitas vezes em pequenos gestos como esse que podemos aferir a competência das autoridades que nos representam e cujos salários são pagos com os nossos impostos.

Para ler outros textos do Prof. Veronese, acesse blog CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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