Pedro de Santi
Nestas semanas, por diversos caminhos têm-se falado sobre a afirmação da mulher, em vários campos: como profissionais ou como detentoras de seus corpos e dos direitos sobre eles. Da mesma, forma, noticia-se melhor estatísticas expressivas e terríveis sobre a violência contra a mulher. Muitas vezes em casa, muitas vezes acrescida da variável racial.
Isto veio na sequência do Outubro Rosa, que é um evento mundial dedicado à prevenção do câncer de mama, mas abre a possibilidade de discutir a feminilidade de uma forma geral. Aqui na ESPM, fizemos um grande evento neste sentido.
Uma das formas mais importantes de afirmação da mulher como sujeito livre foi a recente (mas não unânime) condição de se dissociar da função de mãe. A tradição ocidental sempre assimilou a feminilidade ao corpo, ao desejo, ao pecado e à maternidade. Uma mulher só seria plenamente mulher quando se tornasse mãe. Pelo reverso, uma mulher que não se tivesse filhos pareceria “menos realizada” enquanto mulher.
Em certos ambientes sociais de meados do século 20 para cá, a afirmação da mulher como sujeito livre passou pela condição em transformar a maternidade em uma questão de desejo, não de natureza ou destino. Isto passou pela liberação sexual e criação de métodos contraceptivos. Assim, ser mãe já não é uma necessidade ou condição, mas uma possibilidade a ser realizada quando houver o desejo para tal.
Aparece então a figura de uma mulher que não pode ser reduzida à figura, quer de objeto de desejo do homem, quer de “mala” portadora compulsória da vida. Digo “mala” em referência à deliciosa ironia de Alberto Caeiro, no poema “O guardador de rebanhos”, quando lamenta Cristo ter nascido de uma mãe que não amou para o conceber.
Isto não diminui em nada o desejo, realização e a alegria que pode acompanhar a maternidade, apenas a retira da categoria de “necessidade natural”. Quem quiser ser “natural” pode começar abrindo mão de remédios ou qualquer intervenção médica; pode então procurar uma boa copa de árvore para se abrigar e só comer alimentos crus. E não deve levar o celular ou o energético. A condição humana, como um todo, é definida pela superação e transformação da natureza, mas isto chegou bem mais atrasado para as mulheres.
A temática da maternidade está em pauta no momento também pelo lançamento do belo filme “Olmo e a gaivota”, de Petra Costa e Lea Glob. Escrevi sobre o filme na semana passada, neste espaço. Para além da delicadeza, sinceridade e beleza no trato do tema, o filme causou uma polêmica: ao receber um prêmio num festival no Rio, a diretora Petra Costa fez uma fala política defendendo a liberdade da mulher na disposição de seu corpo, incluindo a questão do aborto. As reações foram, como sempre que se toca neste tema, passionais, em defesa ou ataque (inclusive violento, chulo e ameaçador). Mas a questão do aborto evoca a gravidez não desejada, algumas vezes produzida por um estupro.
Neste tempo, surgiu o hachtag #agoraequesaoelas. Entre outras coisas, muitos jornais, colunistas homens cederam seus espaços para o texto de mulheres sobre sua condição e luta. Mas o principal foi que passamos a acompanhar então inúmeros depoimentos sobre episódios de assédio (leia-se assédio sexual) sofridos e, quase sempre, calados e sem consequências para aquele que perpetra a violência. É exatamente a definição de trauma para a psicanálise: o excesso sofrido que fica sem resposta ou significação, muitas vezes tendo sua própria existência negada.
A luta contra a violência sexual aplicada à mulher entra no mesmo lugar político que a questão da maternidade: é uma forma de garantir sua liberdade e não ser reduzida à uma demanda alheia.
Aqui, achei que poderia contribuir com o debate ao procurar distinguir ‘assédio’ de ‘sedução’.
O assédio se configura por uma desigualdade de poder (físico ou simbólico), condição hierárquica, coerção. Um flerte entre iguais não é igual a um flerte de um empregador ante o empregado. Uma cantada num ambiente público não é igual a uma cantada realizada por alguém mais forte fisicamente que o outro num ambiente isolado e sem escapatória. Uma brincadeira sexualizada feita entre um professor e um aluno, ou entre um pai e um filho, tem a conotação de assédio e não de brincadeira.
No assédio, a situação só é “sexual” para aquele que assedia; para o assediado, a situação é de pura violência deserotizada (sim, existe violência erotizada; justamente no assédio, sadismo ou estupro).
A sedução é “soft power” (ou o contrário, o soft power é sedução). Ela significa literalmente desviar alguém de seu percurso, mas pela ação da atração do desejo do outro, pelo desenho de uma fantasia compartilhada pelas partes em questão. Ainda que o seduzido enteja numa posição passiva, isto se dá numa cena de fantasia consentida, onde encontra prazer. Trata-se dois sujeitos desejantes.
O histérico é passivamente ativo, dizia Freud: ele é sujeito e co-autor de uma cena na qual se encontra na posição de vítima.
O mútuo consentimento, ainda que tácito, a possibilidade de dizer ‘não’ e sair da situação a qualquer momento ou a diferença entre violência real e jogo erótico simbólico; estas são formas de distinguir o assédio da sedução. Onde houver embriagues e prejuízo na capacidade de deliberar sobre si, por exemplo, não se trata de sedução, mas de abuso e assédio.
Penso ser importante estabelecer esta distinção, ainda que se possa conceber inúmeras situações onde este limite se embaralhe ou haja ambiguidade entre claramente não corresponder ao desejo do outro e claramente corresponder, ou ainda, ter o desejo despertado pelo outro. Ainda pior: uma situação de assédio sofrido pode mobilizar fantasias, o que faz do assediado alguém que sofreu do abuso e ainda sentirá culpa por isto.
Mas sem aquela distinção, a legítima e necessária ação contra a violência do assédio pode se misturar com uma repressão geral do desejo sexual, tomado como exclusivamente masculino, sempre violento e reprovável. Ao invés de abrirmos os caminhos para o desejo da mulher, estaríamos, pelo contrário, reafirmando a ideia de que numa cena sexual, a mulher só comparece como objeto do desejo de um homem, o que reduziria toda a sexualidade a uma violência de gênero.
A disputa de que se trata não é entre homens e mulheres, mas entre relações civilizadas de relação e pura violência. O opositor do feminismo não é o homem, mas o machismo.
No evento que organizamos na ESPM sobre o Outubro Rosa, uma das mesas tratava da saúde e sexualidade da mulher. A psicanalista que veio tratar da questão da sexualidade falou exclusivamente sobre situações de assédio sofrido. Nada foi dito sobre o desejo feminino enquanto tal, em sua positividade. Sem dúvida, é preciso reconhecer que esta é a pauta do momento.
Erguida a bandeira cidadã contra a violência, seria triste ver a defesa da condição feminina ser colocada paradoxalmente a serviço da eternização de um estereótipo que retira da mulher sua condição desejante.
Mas sim, é preciso ter-se superado uma condição de coerção para que se configure o desejo de alguém.