A utilidade das coisas inúteis

Cézar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

A literatura brasileira ficou muito mais pobre em 2014. Perdemos Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e, agora, o poeta matogrossense Manoel de Barros. Ao lado de Ferreira Gullar e Thiago de Melo, Barros compunha o coro das grandes vozes que escrevem poesia no Brasil do início do XXI. Poesia e não pernosticismos metalinguísticos recheados de citações eruditas, que é a marca da “poesia” de dezenas de poetastros promovidos pelas editoras e festejados nas Flips da vida.
Vivemos, desde o triunfo das revoluções liberais burguesas do XIX, num mundo (inclua-se hoje também o Oriente) mercantilizado, no qual tudo e todos têm um preço. Quanto custa? Quem quer ganhar dinheiro fácil? O que que eu ganho se eu fizer tal coisa? Nesse pragmatismo absoluto, desenha-se a miséria humana, que se estende da frustração de uma empregada doméstica que lê Caras ao vazio das vidas dos bilionários da revista Forbes que tentam matar o tédio comprando ferraris, jatinhos e bobagens de grife.
A arte é, por definição (embora quase sempre seja transformada em negócio) um discurso contra a obsessão por uma aplicação prática das coisas e de resultados aferíveis em lucros. A poesia, mais ainda, é essa instância da linguagem onde a racionalidade explicativa entra em coma. É, em suas associações não convencionais, suas imagens e seu ritmo, um discurso do indizível, do inexplicável, que, paradoxalmente, se torna uma “explicação”.
Explicação do quê? De um povo, de sua identidade, dos laços que unem os homens de uma etnia, de uma cultura, de uma região geográfica, e que sobrevive malgrado a dança das transformações geopolíticas. Assim se explica, por exemplo, a unidade dos alemães, apesar dos incontáveis avanços e recuos das fronteiras de seu território nos últimos 150 anos. O caso mais emblemático é o da Itália. A colcha de retalhos de burgos, condados e estados que sobraram do Império Romano se unificaram sob a língua italiana, inventada por Dante em A DIVINA COMÉDIA. Dante reuniu e estilizou dezenas de dialetos numa língua literária que até hoje é o maior orgulho do povo italiano.
No Brasil, os poetas árcades, mesmo escrevendo numa sintaxe lusíada e reproduzindo os motivos da poesia pastoril europeia, foram os pioneiros em forjar a ideia de uma intelectualidade capaz de pensar o Brasil, quando este nem tinha ainda o estatuto de país. Em sua esteira, impulsionados pela Independência, os românticos (e suas infinitas contradições) levaram adiante o projeto e se esforçaram por criar uma identidade nacional, na qual a poesia seria umcimento capaz de unificar nossas diferenças de proporções continentais.
No XX conhecemos Drummond e Cabral, poetas capazes de ombrear com os grandes nomes da poesia universal. Poemas como “A Máquina do Mundo” (Drummond) ou “Uma Faca Só Lâmina” (Cabral) sozinhos garantiriam um lugar para a língua portuguesa na história da cultura universal. São textos que testemunham a genialidade da espécie humana e que mesmo quando o Brasil desaparecer como território geográfico, continuarão a testemunhar a nossa maturidade intelectual.
A poesia de Manoel de Barros defende explicitamente a “inutilidade das coisas úteis”. É uma poesia do menos, das pequenas coisas, pescadas no coração da natureza do Brasil com a sensibilidade de um poeta que conviveu com o cosmopolitismo novaiorquino, e que, na sua “pequenez” diz muito sobre a grandeza da vida e do homem. Drágeas recomendáveis a um país dominado pela corrupção, pela violência, pelo retrocesso dos radicalismos políticos, pela banalização da pessoa humana, pelo consumismo e pelo sensacionalismo professado a cada segundo pela mídia.
Para ler outros textos do Prof. Veronese, acesse blog do CPV (link Dicas Culturais do Verô)

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