A que distância as urnas estão das ruas? Ou, por que não gostamos de política?

Carlos Frederico Lucio

Em Alagoas, Collor é reeleito Senador e o filho de Renan Calheiros, governador; no Maranhão, apesar da eleição de um candidato do PCdoB, a família Sarney se consolida com mais um herdeiro de sua dinastia; o mesmo ocorre com o Pará de Jader Barbalho; no Rio de Janeiro, além da arrasadora votação de Jair Bolsonaro, sucessores de antigos patriarcas da política agora passam a ocupar cadeiras no legislativo; em São Paulo, José Serra e Geraldo Alckimin se consagram na manutenção do controle do estado mais rico e supostamente desenvolvido da federação, enquanto a população consagra no Legislativo nomes como Celso Russomano, Tiririca, pastor Marcos Feliciano além da chamada “bancada da bala”. Só para citar alguns exemplos do que ficou evidenciado pela mídia a partir do resultado do pleito do último dia 05 de outubro. Certamente, se for feita uma investigação mais detalhada por todo o Brasil, veremos se confirmar um perfil relativamente semelhante dos eleitos e mais dados como esses surgirão.

Tomando o resultado das eleições gerais como referência, muito se debateu a respeito de uma eventual mentalidade conservadora da população brasileira, sobre sua inconsistência civil, cidadã e política que aí teriam sido reveladas. Conservadorismo aqui entendido não como um juízo de valor, mas como um juízo de fato: literalmente expresso na conservação do antigo. Para quem acreditou – como eu – que o Junho de 2013 representava um sinal de cobrança por renovação, de efetiva vontade de mudar os rumos da política nacional, uma primeira leitura é que tal resultado representaria um balde de gelo sobre a euforia do clamor por mudança. Mas depois, uma outra pergunta me veio à mente: será que estas eleições estão tão distantes assim daquilo que vimos nas manifestações do ano passado? As linhas que se seguem são uma reflexão livre sobre as relações entre a urna e a rua; que responsabilidade estrutural temos nós, eleitores, quando votamos de maneira irresponsável, ou seja, “de qualquer jeito”. E mais: pensar quais as implicações para a efetiva democracia das relações entre o Parlamento e o Poder Executivo, tentando resgatar um pouco o peso que deveríamos dar para a as eleições do Legislativo.

A despeito deste ranço conservador manifesto no pleito, um fato chamou a atenção de especialistas em Ciência Política e Sociologia: a alta taxa da chamada “alienação eleitoral”(também conhecido como “voto de alienação”), termo técnico que é dado para a somatória dos votos brancos, nulos e as abstenções. (Importante enfatizar que este conceito não deve ser confundido com “alienação política”, que é outra coisa.) Acredito que, até pelo fato da nossa tradição democrática efetiva ser muito recente (como bem lembrado em muitos veículos, esta é “apenas” a nossa 7ª eleição livre consecutiva, desde o fim da ditadura militar), o estudo do fenômeno da alienação eleitoral ainda é bem marginal na Ciência Política brasileira (embora eu tenha encontrado alguns estudos que remontam a 1945) e sua etiologia ainda é muito pouco conhecida. Os autores divergem não somente quanto às suas causas mas, principalmente, sobre os seus potenciais significados. Apesar disso, não são poucos os autores que a indicam como um “voto de protesto”, sobretudo quando há, em alguns casos, números expressivos, como os da última eleição. E esta interpretação ainda ganha mais força quando vinculada à obrigatoriedade do voto, tema que sempre ressurge em momentos eleitorais.

Segundo apontam os dados do TSE para o pleito de 2014, dos cerca de 143 milhões de eleitores cadastrados, o alienação eleitoral somou aproximadamente 29% (ou seja, algo em torno de 41,5 milhões). É muita gente!!! Mais do que os 21,3% de Marina Silva (terceira colocada) e próximo aos 33,3% de Aécio Neves (segundo colocado). E, é sempre bom resgatarmos nossa memória política recente, esses números expressivos só foram superados pelos dois pleitos que elegeram o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que registra um recorde curioso: foram 33,1%, em 1994; 36,1%, em 1998, os maiores já registrados na história política brasileira, especialmente no momento pós redemocratização (Cf. Um histórico das taxas de alienação eleitoral, do Cientista Político Diogo Costa). Segundo levantamento feito pelo autor, entre 2002 e 2010, as taxas de alienação eleitoral se mantiveram constantes, oscilando entre 23,7% (2006) e 27,1% (2002), isto é, não muito longe dos atuais 29%.

Com base nisso, fazendo uma leitura mais crítica dos dados do pleito de 2014, é possível pensar que eles podem significar (como afirmam vários autores) que, pelo menos em tese, a concretização daquilo que foi expresso nas manifestações de rua em 2013: uma clara expressão de repúdio à atual estrutura política (principalmente a ojeriza manifesta nas ruas contra os partidos políticos). Se, em outros momentos da história do Brasil isso não era tão caracterizado, não podemos negar que em 2013, as ruas brasileiras estavam repletas de mensagens anti-políticas e anti-partidárias. Mas por que, então, elegemos um Parlamento de configuração tão pouco comprometido com a democracia? Colocamos no poder pessoas que em quase nada representa esta mudança cujo desejo foi amplamente anunciado nas ruas?

Antes de prosseguir, só um pequeno parêntesis. É preciso não superestimar a importância do movimento de junho e 2013. Teve um caráter efêmero, sendo prontamente esvaziado, não tendo uma sequência. E o que é mais interessante: uma vez que se clamava por mudança, não vimos surgir daí novas lideranças, novos nomes que pudessem iniciar sua projeção no cenário político para concretizar esta transformação. Claro que ele foi um dos mais significativos que tivemos nos últimos tempos no Brasil, pelo menos em termos de mobilização popular (comparável aos “Caras Pintadas”, de 1992 e às “Diretas Já”, de 1984). Mas a sua não continuidade e, principalmente, o não surgimento de novas lideranças, pode confirmar um certo distanciamento que a tradição brasileira tem da participação politica efetivamente cidadã, no sentido de aproveitá-la para canalizar mudanças no cenário político formal (naquilo que seria a política representativa, caracterizado pelas eleições).

Nossa tradição tem uma certa mescla de um profundo senso de “personalismo”, uma forte tendência hierárquica, expressa no “mandonismo” e até mesmo uma certa aura de“monarquia absoluta”: valorizamos a pessoa que manda. Este nosso traço cultural já foi amplamente analisado por nosso maiores intérpretes. E ele fica muito evidente nesses momentos, quando priorizamos as eleições para o Executivo e relegamos a um plano subalterno as do Legislativo. É assim que tratamos a eleição presidencial como a eleição de um monarca absoluto (ou mesmo um d. Sebastião, um “Salvador da Pátria”), aquele que tudo pode, como a única peça importante de um Xadrez Político. Os demais, seriam os peões e figuras de adereços no grande desfile carnavalesco de nossa democracia. Esquecemos que, num jogo de xadrez, peões, cavalaria e bispos, podem “comer” o rei, pondo fim ao jogo.

Negligenciamos, com isso, o parlamento nas suas várias esferas (Senado, Câmara Federal, Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais). A participação no Parlamento é uma das mais importantes conquistas democráticas, pois é o parlamento que relativiza o poder do Executivo, impedindo que caiamos num regime totalitário. Só lembrar da importância da Revolução Gloriosa na Inglaterra, ocorrida no século XVII e que, pela primeira vez, pôs xeque ao absolutismo monárquico quando a burguesia emergente conquistou os primeiros lugares no Parlamento inglês. Este é o início do fim do absolutismo europeu. Aqui no Brasil, temos o mau hábito de relegar o parlamento a um plano subalterno e sem importância. O problema é que num regime democrático moderno, nenhum Executivo governa sem o apoio de uma base legislativa (sem falar no papel fundamental do Judiciário – que ainda não é eleito). Muitas vezes, como temos testemunhado, o Parlamento tem sido um importante óbice ao Executivo. Isso é assim no mundo todo (vide a preocupação de Obama, frente o crescimento da bancada Republicana; ou do David Cameron, François Hollande e por aí vai). Tratamos o Parlamento como se fosse um adendo à nossa democracia. O que conta, para nós, é o Executivo, pois é “o presidente” que manda. E que adendo caro, diga-se de passagem. Um dos mais caros do mundo. Caro e ineficiente!

E nesse culto ao personalismo monárquico em relação a nossos governantes, contribuímos mais uma vez para travar a máquina administrativa do país. Colocamos num lugar importantíssimo pessoas (e partidos) sem o menor gabarito, competência e compromisso efetivo com a nação. Sem falar na ausência de representatividade. No atual cenário brasileiro, por exemplo, qualquer um que for eleito, como dizem alguns analistas políticos, terá que negociar não mais com 22, mas com 28 partidos que, como sabemos, não possuem propriamente uma ideologia e muito menos uma agenda política definida. Ao contrário, expressam vontades políticas coronelistas, personalistas que operam ao sabor de interesses menores (e, muitas vezes, escusos). E o que é pior: interesses a que submeterão o Poder Executivo (não importa de qual dos dois lados da atual polarização) a alianças espúrias em nome de uma governabilidade. Não importa se isso comprometerá a sua agenda de propostas, nem mesmo sua própria convicção ideológica. Isso está além das vontades pessoais de suas lideranças. É uma exigência do jogo político e quem é estudioso do assunto sabe disso. Política é cálculo de viabilidades, de exequibilidades. E aí, com um voto irresponsável, acabamos condenando os eleitos a esse jogo ao qual, nós aqui de fora, chamamos “sujo”, “nojento”.

Se queremos respeitar (e ver respeitados) princípios e valores temos, portanto, que pensar no conjunto do complexo político ao fazermos nossas escolhas. Do contrário, condenaremos os eleitos à contradição, ao paradoxo. E nós assumimos a hipócrita postura de um Pilatos que lava suas mãos diante da alegada “sujeira” alheia, pois desconsideramos qualquer responsabilidade nossa nesse processo. E não é bem assim. Num certo sentido, nós, eleitores muitas vezes incautos, temos uma grande (não exclusiva, óbvio) responsabilidade nisso. Na conveniência de nossa “amnésia”, ainda faremos as críticas a eventuais alianças eticamente condenáveis que o Poder Executivo será obrigado a fazer em nome da governabilidade.

Na minha percepção, nesta característica míope da visão política brasileira, esquecemos que nossa democracia funciona sob dois primas importantíssimos que se complementam: a democracia participativa (expressa pela capacidade de mobilização social de caráter reivindicatório) e a democracia representativa (simbolizada pelo momento do voto, em que delegamos poder a pessoas que ocuparão cargos representando, não “nossos” interesses, mas aqueles interesses que defendemos e entendemos ser os mais adequados para a construção de um país melhor para todos). Uma não existe sem a outra. E é justamente da esfera participativa que devem surgir novas lideranças, novas forças políticas que poderiam transformar este cenário, soprando ventos fortes que varressem os mofos das velhas articulações políticas das quais todos estamos cansados.

Como nós super valorizamos o voto como momento máximo da democracia, esquecemo-nos também que esses esses dois momentos são fundamentais. Mas é de “lá” (das ruas, dos movimentos sociais, da participação efetiva) que deveria vir perspectiva de mudança, de transformação. Vejo como uma peça articulada: os movimentos sociais nas suas várias dimensões e esferas (símbolos fortes da democracia participativa) deveriam gerar essas lideranças novas que seriam transpostas para a esfera representativa por meio dos cargos eletivos (principalmente o Legislativo). Foi o que aconteceu com as Diretas Já e com os Caras Pintadas. E o Parlamento seria um grande laboratório de exercício, de treinamento, para essas lideranças verdadeiras, aquelas que, de fato, têm visão do público, da coletividade e de representar interesses, não de grupos corporativistas, mas interesses sociais (por mais diversos que eles sejam). Pessoas que pensem na coisa pública, na “res” pública, origem da própria estrutura de governança que construímos.

Nesse sentido, enquanto não entendermos que as eleições parlamentares são tão (ou até mais) importantes que as do executivo, e enquanto não compreendermos a enorme importância da relação entre a esfera participativa e a representativa, “nós” vamos continuar reclamando “deles” como se não tivéssemos nada a ver com isso! E seguir praticando o velho hábito brasileiro de falar mal e vilipendiar a esfera política.

Quem sabe, se esse dia chegar, voltaremos a atingir um grau de credibilidade e reconhecimento na representatividade na vida política, deixando de pensar como nossa querida enfant terrible, a Mafalda. Quando chegarmos a este patamar, não nos preocuparemos mais com os eventuais significados da alienação eleitoral, pois ela certamente indicará pura e simplesmente: não quero votar! O que, diga-se de passagem, é um direito do eleitor. Até lá, estaremos sujeitos a cumprir a sina preconizada por Platão:“Ora, não há nada de errado com aqueles que não gostam de política. Simplesmente serão governados por aqueles que gostam.”

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