Pedro de Santi
Num texto da semana passada para o Nota Alta ESPM, falei sobre o embaralhamento entre representação e realidade no filme Birdman. De passagem, mencionei uma relação com outro excelente filme, Boyhood, também concorrente ao Oscar de melhor filme.
Neste texto gostaria de chamar a atenção sobre outro ponto de tangência entre os dois.
Em Birdman, destaco uma cena entre o próprio e sua filha. Em meio a uma discussão sobre a relação entre eles, ela aponta- com aquela precisão aguda de que só o olhar de um filho é capaz, olhar de proximidade e ressentimento- que um dos problemas era o esforço constante que ele fazia para provar que era importante quando, na verdade, ele era tão desimportante quanto todos nós. Daí o poder de sua fantasia e o anseio pelo sucesso na peça. A própria escolha pela peça envolvia um bilhete escrito pelo seu autor, no qual reconhecia nele um ator promissor: ele se apegava àquele bilhete e o exibia como um oráculo.
Em Boyhood, já quase no final do filme, a mãe acompanha seu filho até o quarto da residência universitária na qual ele passará a morar. Neste momento de passagem, num dos inúmeros passos rumo à autonomia do filho, a mãe começa a chorar e faz um breve relato dos acontecimentos de sua vida: crescimento, casamento, maternidade, crescimento do filho. Agora, na faixa dos 40 anos ela reconhecia valor nisto tudo, mas diz: “é só isso, passar por estas coisas e esperar para morrer?” O filho a consola e diz que em sua tristeza, ela estava esquecendo os próximos 40 anos de vida que provavelmente teria. Mas não é disto que se trata, de alguma forma, ela esperava “mais” da vida.
Não parece se tratar de algum projeto não realizado ou fantasia utópica, mas de um sentimento de insuficiência da vida, ou na vida.
Há em ambas as personagens algo como uma exigência que os move a realizar algo que comprove, garanta ou confirme sua existência.
Nosso legado de trabalho ou intelectual e nossos filhos são coisas que podem representar, ainda que de forma circunscrita, uma marca deixada no mundo por nossas vidas.
A consciência da passagem do tempo deve nos mover a querer deixar o registro de nossas realizações, como resistência. Pintar na parede de cavernas, postar em redes sociais, fotografar, escrever em Blogs. Há nisso tudo uma ânsia de transcender ao fluxo da vida que tem algo de patético e belo.
Lembrei de três autores de que gosto muito e que proporcionam imagens perspectivas de nossa pouca importância relativa.
Nietzsche, na primeira página de “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral” quando fala do animal que se acredita o centro do mundo e inteligente, cuja existência ocupa uma fração insignificante de tempo e sua posição é aleatória numa escala cósmica: a mosca também deve se sentir o centro voante do universo. Fernando Pessoa (com o heterônimo Álvaro de Campos) no poema “Tabacaria”, ao narrar como um dia tudo terá passado, a Tabacaria, a placa que leva seu nome, a rua, o planeta. E acaba por receber um aceno do dono da tabacaria: o Esteves, sem metafísica.
E finalmente Freud, num pequeno e pouco conhecido texto chamado “A transitoriedade”, quando conta de um passeio que fez com o poeta Rilke e Lou Andreas Salome. No passeio num campo florido, Rilke não conseguia desfrutar da beleza da paisagem tomado pela consciência da morte iminente das flores e de tudo. Freud, normalmente sombrio, procura evidenciar o valor específico do desfrute daquilo que é raro e está destinado a passar. A transitoriedade é valor de raridade e as coisas só podem mesmo “nos existir” na dimensão própria à vida humana.
Mas Freud diz que entende a reação de luto antecipado do poeta, como reação ao sentimento de perda que todos nós sofremos.
Em revolta contra esta condição, buscamos provar nossa existência e permanência. Inventamos diversas formas de fazer um selfie, mas como elas ainda assim não bastam, ostentamos a própria insuficiência acrescentando-lhes um pau.