A memória que me contam

Por Pedro de Santi

Trata-se de um filme de Lucia Murat, de 2012. Tendo sido lançado no final do primeiro semestre deste ano, ele acabou por ganhar uma relevância especial desde as manifestações pelo Brasil, desde junho. A diretora tem uma sólida carreira, produz filmes quase que anualmente, quase sempre em torno da temática da luta armada contra o golpe militar, da qual participou.

No filme, Ana está internada, no limiar da morte. Com a chegada de parentes e amigos ao hospital, ficamos sabendo que ela foi uma ativista nos anos 60. Uma pessoa de destaque na luta contra a ditadura no Brasil. Sua morte evoca o fim de uma era e a perda da memória a ela relativa. Segundo Lucia Murat, diretora e roteirista, a personagem foi inspirada numa pessoa real, que tendo sido presa e torturada no início dos anos 70 (como a própria Lucia, aliás), viveu os anos seguintes entre  surtos e internações.

Ao longo do filme, uma única imagem dela no presente é mostrada. Um close que apenas se insinua um rosto enrugado. Ela se apresenta no filme ante seus pares e com eles dialoga no presente, com sua imagem jovem, quase sempre com um cigarro na mão: idêntica a si-mesma. É tão forte sua representação de então que parece obscurecer toda a sua vida posterior. É quase como se ela tivesse morrido em 68, na realidade. A imagem da jovem Ana é poderosamente pregnante, ela catalisa uma época, um ambiente, uma juventude. Seu adoecimento e morte traz a tristeza da morte desta época, reduzida, talvez a um imaginário esvaziado de realidade atual.

Mas evoca também a tristeza de imaginar que tudo o que se seguir e foi vivido entre os anos 60 e o presente tem um sabor de não vida, negatividade, não notável.

Cada um dos personagens dialoga com ela individualmente e vai se montando um quadro de perda: envelhecimento, fim da utopia, percepção de que aquela história tão importante é pouco lembrada, conhecida e reconhecida pelas gerações mais jovens. Enquanto memória, o fato de Ana aparecer a todos da mesma forma, com um discurso identitário, produz estranheza. Sabemos que a memória é altamente subjetiva e traduz sem cessar seus traços para um, na trama que entretece passado e presente num sujeito. Seria mais realista que cada um dos personagens evocasse uma “Ana sua”, tal como se lembra, tal como a significa. Ou devemos suspender a expectativa de realismo, ou podemos imaginar que aquela imagem funciona quase como um trauma, não como algo que já se tornou memória e foi metabolizado pelas personagens.

O filme evoca temas atuais, como a Comissão da Verdade, a discussão sobre a criminalização de atos de terrorismo dentro de um contexto de guerra (ditadura), a inclusão de pessoas ligadas à esquerda política nos meandros do poder atual, entre outros.

Os jovens do filme são também emblemáticos. Uma jovem franco-brasileira busca anotar as histórias que considera mais importantes, na tentativa de reter “a memória que me contam”. Outro casal de homens jovens mantêm-se próximo à Ana e desfruta da possibilidade contemporânea de ter um relacionamento homoerótico com naturalidade. Curiosamente, embora estes jovens pareçam desconectados da história, sua vida tem como condição de possibilidade a luta pela liberdade e democracia daquelas pessoas mais velhas, na antessala da morte.

O filme se tornou curiosamente oportuno, hoje. Será que não é exatamente isto o que vimos? As manifestações difusas desde junho, que denunciam a desconexão de partidos e sindicatos tradicionais das demandas dos jovens; o resgate de canções e imagens dos anos 60, numa dimensão estética, mais que política. Quantos manifestantes não buscaram exatamente isto: postar uma foto na qual enfrentavam a polícia?

Num clima de realismo fantástico, Ana afirma que não vale a pena continuar viva sem poder ser ela mesma. Dá a impressão de que vivemos um vácuo (uma vacância): não temos imagens próprias e atuais, ainda dependemos do imaginário de 50 anos atrás. Ainda não sabemos se as manifestações vão se diluir ou criar novas formas para aqueles princípios que animaram as utopias perdidas.

Fora Ana, as personagens do filme envelheceram, de alguma forma, conseguiram se integrar e construir vidas distintas: um se tornou ministro, outra se tornou cineasta, etc. E o filme produz uma impressão bastante ambivalente sobre isto: quem se integrou venceu ou se degradou? Ana que não se desligou de sua identidade e não se integrou, é forte ou louca?

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