A intolerância de sempre e a intolerância de hoje

Pedro de Santi

Os pavios andam curtos. A simples menção a um termo que possa vir a ser interpretado de forma ofensiva por alguém, ainda que sem esta intenção no contexto em que foi usado, gera uma reação forte de recusa. Esta defesa é feita, aliás, sob o argumento da empatia irrestrita com relação a cada um que possa se sentir ofendido.

Nas redes sociais, muitas pessoas caçam qualquer coisa que possa ser posta em evidência para atacar o “outro lado”; e expressam seu gozo ao conseguir fazê-lo. Já a expressão e as publicações do “outro lado” são sempre consideradas ofensivas e irracionais, gerando furor e desejo de aniquilamento. O policiamento raivoso imposto ao outro não tem a contra-partida da auto-crítica, no entanto. Aquele que se sente violentado pelo outro se sente liberado para exercer sua própria violência. Parece bastante claro que esta atitude reativa mútua só pode levar a uma escalada de intolerância e ódio.

A intolerância acompanha toda a história das relações humanas. Ao mesmo tempo, pode-se perceber que há momentos ou contextos culturais nos quais ela parece maior ou menor. De algumas formas, que desenvolverei adiante, considero que vivemos um momento especialmente recrudescido de intolerância. Neste artigo, desenvolverei algumas considerações gerais sobre a perspectiva psicanalítica sobre a intolerância, para então procurar refletir sobre nossas condições mais particulares, hoje.

‘Tolerar’ significa aceitar, suportar. Seu negativo- a intolerância- é psicologicamente uma reação defensiva do eu. Uma afirmação da própria identidade e expulsão do que pareça ameaçador a ela. É uma prevenção ante a iminência de um trauma. Trata- se de uma sensibilidade alérgica.

Pode-se imaginar então que a intolerância é própria de um eu forte, mas não. Um eu forte é, para a psicanálise, aquele que se faz flexível e busca por soluções de compromisso entre as forças em ação; ele se deixa afetar e transformar; e se permite cair e se perder, pois confia que poderá se recompor. Em sua rigidez, o eu intolerante denúncia seu terror à dissolução: sua insegurança.

Desta perspectiva, a intolerância pode ser a marca de uma identidade ainda em construção (situação pela qual todos passamos), precisando se assegurar e reassegurar a cada instante; ou ainda a marca de um eu traumatizado, que experimentou excessos que puseram em risco sua integridade.

Mesmo por este caminho, que busca certa empatia na compreensão da intolerância, dificilmente alguém intolerante atrai simpatia, uma vez que aquele eu reativo busca se impor sobre o outro, a quem procura desqualificar (ou mesmo aniquilar). A intolerância tende à violência e ao isolamento da pessoa em si ou em seu grupo identitário.

A condição humana faz de nós seres relacionais, de misturas, conflitos e compromissos: a intolerância gostaria de abster desta confusão e sujeirada humana. O que é nossa origem num ato sexual senão a arte da mistura? Mas a intolerância busca ser asséptica e ascética: pura e acima do mundano. É como no sonho irrealizável de Narciso: não depender de ninguém, não ter ninguém dependendo de si.

Não nascemos tendo de início um “eu”. Ele será precipitado pela percepção por parte da criança de que há vazios, espaços e descontinuidades entre a própria experiência e a daqueles de quem vem o cuidado e afeto básicos. Em termos teóricos, a desfusão com a figura materna (quem quer que exerça a função).

Só há um eu quando há um não eu, um outro. Os ‘nãos’ emitidos pelo outro e pelo eu marcam as fronteiras onde um acaba e outro começa. É difícil dizer não a quem amamos ou de quem dependemos, é dar prova de descontinuidade e frustrar as fantasias de fusão e identidade.

A criança humana provavelmente vive mergulhada em experiências e sensações intensas de prazer e desprazer. Naturalmente, o eu busca reter tudo que lhe dê prazer e segurança; e repudia e busca evitar tudo o que for mau. Numa formulação clássica de Freud, o eu incialmente se identifica com o bom e projeta o mau: eu é bom, não eu é mau.

Assim, a vida humana é dependente e ancorada num outro desde sua origem e como sua condição, mas sua primeira representação do outro tende a ser a de um inimigo que frustra e ataca: a fonte de todos os males. Para outra grande psicanalista, Melanie Klein, a experiência infantil não conhece o vazio: sua experiência seria uma “aquisição” que requer certa maturidade. De início, ora a criança vê um outro bom (mãe boa, seio bom), fonte de todas as satisfações; ora, em momentos de frustração e dor, vê um ser mau. O mundo infantil é sempre animado e quando a luz do quarto se apagam na hora de dormir, ele fica qualquer coisa, menos vazio: cessado o “input” de estímulos ambientais, a consciência é invadida por fantasias, em grande parte, destrutivas e persecutórias

Ao longo de seu desenvolvimento/amadurecimento, o eu em geral vai se dando conta de que aquela cisão entre o absolutamente bom e o mau não existe; ele passa a poder integrar parcialmente seus aspectos mais destrutivos (negativos) e reconhecer valor no outro. A mesma mãe que vem e atende é a mãe que vai ou demora a vir. Aqui surge a experiência do vazio: nem tudo de mal ou bom que acontece tem um “sujeito”. Mas esta aquisição é sempre incompleta e sujeita a regressões em situações de força emocional (quando se mexe com nossa família, time de futebol, posições políticas…). O outro vivido como mau, inimigo ou concorrente poderá ser visto também como amoroso, parceiro, acolhedor. O fim das idealizações que fazemos sobre nós é também o fim da idealização do outro: nem um nem outro absolutamente bom ou mau, onipotente ou impotente.

Voltando a Klein, nesta condição, a criança passa a se sentir culpada. Ela se dá conta que aquele ser frustrante e violento que odiou é o mesmo que ama e lhe dá amor. O outro é visto agora não como parte (boa ou má), mas como um ser total. Da culpa sentida pelos ataques desferidos, pode nascer o desejo-me reparar os estragos produzidos e, adiante, o sentimento de gratidão por aquele ser. Reparação e sentimento de gratidão: temos aqui uma das versões para a origem da condição de empatia pelo outro: se eu sofro ante o ataque, o outro também deve sofrer ante meus ataques.

Somos capazes de sentir apenas nossos próprios sentimentos e, quando crianças, vemos o outro apenas como objeto de seus interesses ou instrumento para alcançar seus fins. É também uma aquisição do amadurecimento conceber que o outro também tem uma consciência e pode sofrer; não somos “um” com ele, ele não existe para nos satisfazer. Ele é de fato, outro ser. É preciso aprender isto: compreender que o outro também sente como eu não é uma experiência imediata.

Vale dizer que o limite de nossa empatia ou relação para com o outro tem este limite, ainda de ordem narcísica. Só conseguimos ter empatia ou compaixão (dois termos derivados de ‘pathos’, como compartilhamento dos mesmos sentimentos) se conseguimos nos ver na situação em que o outro se encontra (se fosse comigo…). O outro que não nos concerne e que passa por algo que não concebemos que possa se dar conosco não nos comove.

Em suma, haveria uma relação direta entre a necessidade de auto-afirmação (e só necessita quem não tem) e a intolerância ao outro.

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