A intolerância de sempre e a intolerância de hoje [Parte 3]

SERVIÇO: Debate sobre a questão da Intolerância atual. Com os Profs. Clarissa Rahmeier, Fred Lucio e Pedro de Santi. Terça-feira, das 13:30 às 15:00 hs., na sala B 231.
Com o apoio do D.A. Vale ACOM.

As fronteiras cambiantes

Pedro de Santi

Nesta terceira e última parte do texto em que procuro trabalhar a questão da intolerância de uma perspectiva psicanalítica, procurarei refletir sobre a mobilidade contínua das fronteiras entre o que é ou não tolerável.

Parto de uma situação relatada em meu consultório. Um homem na faixa de seus 20 anos recentemente se tornou vegetariano. Naturalmente, ele enfrenta alguns desafios novos em sua vida social: em alguns ambientes é difícil encontrar opções que atendam ao seu vegetarianismo. Esta dificuldade o perturba cada vez mais, a ponto de faze-lo deixar alguns lugares, ofendido. De um lado, ele entende que tem o direito de escolher ser vegetariano e que os demais têm o direito de fazer suas opções de hábito alimentar; de outro, ele passou a considerar verdadeiramente errado comer carne e passa a se irritar com quem o faça. Agora, ele passa a ter ímpetos de discutir com todos para convence-los a mudar de hábito. Neste caso, o outro estaria alienado de uma realidade cruel e seria algo fundamentalmente bom corrigi-lo de um mau hábito. Ainda refletindo, diz que não chega ao ponto de ser vegano e come ovos e queijo. Ou seja, ele considera que também não faz o que é certo até o extremo, embora esteja tentando melhorar.

Ao ouvir esta história, lembrei-me do caminho percorrido pelos usos do cigarro (de sinal de elegância até o repúdio social, chegando a certo orgulho dos fumantes atuais, que se consideram em posição de resistência contra uma ditadura) e fantasiei sobre se um dia aqueles que comem carne poderão vir a ser excluídos socialmente.

Meu paciente está em um momento de passagem e reacomodação em seus valores; em período de viva reflexão, sofre com os ajustes, atritos e “traduções” que deve fazer de seus valores anteriores. Certas ideias que incorporavam seu eu como naturais passam a ser vistas como vergonhosas, constrangedoras. Algumas delas não terão mais direito de cidadania e, afinal, serão reprimidas.

Ele está às voltas com sua identidade e com mudanças em suas próprias fronteiras. Ao faze-lo, evidencia que temos fronteiras que nos dão limite e diferenciam dos outros, mas também de que as fronteiras são convenções e não substâncias imutáveis. O limite eu/não eu não é simples ou estável. É dentro de um jogo de forças complexo que fronteiras se estabelecem e acomodam; mas esta acomodação tende a ser provisória e sempre sujeita a reacomodações, conforme as forças envolvidas também se transformem.

Identidades são a crença na permanência de algo idêntico a si-mesmo ao longo do tempo. Esta crença tende a ser ilusória, ao ignorar o cabo de guerra múltiplo dentro qual constantemente estamos. As tentativas de se manter apegado a identidades que já não dão conta das demandas atuais geram o sofrimento neurótico (“apesar de mim, estou mudando”; assim uma paciente se apresentou a mim há alguns anos) ou até no limite, levam a um estado delirante (que tem uma referência emblemática do filme clássico “O crepúsculo dos deuses” (“Sunset Blvd.”, Billy Wilder, 1950).

O próprio ‘eu’ seria assim uma espécie de partido de centro, procurando encontrar soluções de compromisso entre as forças envolvidas. Uma colcha de retalhos com contradições e incoerências internas, numa dada configuração de fronteiras. Esta unidade instável cria ainda um campo de exclusão- o reprimido- que cobra seu preço e acaba por vazar de alguma forma. O que está para lá das fronteiras não deixa de ser real, passa a ficar fora do controle do eu e acaba por se infiltrar, de forma disruptiva. Além disto, tudo o que vier ao encontro do eu e remeter associativamente ao reprimido provocará uma forte reação de repulsa.

Encarar o próprio desejo reprimido estampado no outro é algo fortemente ameaçador. Para a psicanálise, a sensação de nojo atesta exatamente isto: o contato com um objeto que gera uma forte excitação, mobiliza um desejo; sendo este objeto inaceitável ao conjunto representativo que constitui o eu naquele dado momento, a excitação terá seu sinal trocado de atração para aversão. Algo que não tocasse algo muito profundo em nós causaria indiferença, não aversão.

Dentre certas definições do que é tolerável ou não hoje, aqueles que são mais velhos com frequência podem dizer a expressão: “antes podia”. Ao longo do tempo, piadas ou preconceitos arraigados socialmente ao ponto de terem se tornado invisíveis, tornam-se agora inaceitáveis. Isto não se dá necessariamente num sentido de ampliação ou progresso, num espírito positivista que considere que o mundo não pare de progredir e melhorar; mas no sentido de criar novos espaços de possibilidade do que seja aceitável, em detrimento de outros.

Embora haja um discurso muito difundido pela aceitação progressiva da diversidade de comportamentos, etnias e gêneros, não estamos vivendo de fato uma simples ampliação de possibilidades e espaços, mas sim um redirecionamento, com a criação de novos territórios e fronteiras de inclusão e exclusão. Pessoas que viam suas opções oprimidas por uma ordem vigente anterior não querem simplesmente ter direito a voz, mas sim o direito de tolher as vozes que lhes oprimiam. E é óbvio que aqueles que tinham espaço e voz veem seu território invadido e reagem em protesto, buscando retomar a posição anterior. Este é o protesto embutido no “antes podia”.

Na semana passada, circulou a notícia sobre uma senhora centenária que foi visitar o Presidente Obama; todos se surpreenderam com sua vitalidade e alegria ao dançar com o presidente. Ela justificou, dizendo que levou 106 anos para ver um presidente negro. Pela energia que mostrou, aquela senhora corre o risco de viver para ver um antípoda de Obama ser eleito. O puxa e repuxa passou de Bush filho a Obama e, deste, pode passar Trump. Camadas tectônicas em acomodação, gerando terremotos e reviravoltas

Penso que o século 21 tem sido o cenário de lutas acirradas por parte de grupos identitários que, a cada movimento seu, afetam outros grupos que se veem ofendidos ou invadidos e reagem proporcionalmente a seu sentimento, retro-alimentando a invasão e gerando ódio. Isto se dá pelo simples fato de cada entidade existir e ocupar espaço, mesmo que não haja uma intenção provocativa; o que por vezes também acontece, é claro. Nossa simples existência já nos coloca em posição de afetar o outro e invadir seu território, e vice-versa. Não há dúvida de que haja algo de positivo nestas afirmações de si e na recusa por aceitar opressão, mas passamos a pagar o preço do atrito gerado por isto.

A máxima segundo a qual “nossa liberdade acaba onde começa a do outro”tem como pressuposto que sejamos entidades autônomas individualizadas; mas não somos assim, somos seres relacionais e os outros integram e ameaçam minha identidade como eu a de tantos outros. Para que não corrêssemos o risco de ofender ninguém, precisaríamos nos anular ou nos fechar. Este é o problema daquela meta politicamente correta de procurar prevenir que uma expressão possa vir a ofender alguém. Como ninguém está disposto a se aniquilar, grupos cada vez mais fechados se formam, evitando expor os conflitos, procurando se “purificar” e não se misturar. Esta direção é feudal e monádica e não gera uma comunidade mais plural, mas sim um aglomerado de individualidades avessas umas às outras. Isto não é convívio com a diversidade: é a vitória da intolerância.

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